quinta-feira, novembro 29, 2007

Um naco na pedra

O António Gonçalves era de méritos reconhecidos na mesa de rámi e como narrador testemunhal nalgumas das maiores pancadarias em jogos do Vitória fora da Picheleira. Estranhei por isso a saída para o campo literário-tecnológico:

- Vi o teu blogue, pá. Tens viajado muito.


Para quem tem um blogue cuja principal característica é estar em banho-maria, foi bom de ouvir. Fez-me lembrar de horas a escrever sobre sítios e situações. Revi rapidamente na minha cabeça alguns dos textos e enquanto…


- Mas quando é comes o naco na pedra?

Pronto, já faltava. Há 13 meses decidira-me a escrever um texto sobre uma refeição em plena Grote Markt de Antuérpia. Havia coisas a escrever. Mas, entretanto, à falta de tempo e inspiração, ficou só o título.


Desde en- tão, foi ali que o Gon- çalves me desejou uns Felizes Natais de 2007 e 2008, que o Je fez este ano o mesmo e que, por fim, o companheiro Waick Bannon me deixou um abraço de Bom 2009.


Custa-me, por isso, ter que levantar os pratos. Mas era quase uma injustiça histórica deixar a mesa mais tempo assim. Antes que cheire mal, siga então para raspagem.


Texto escrito a 31 de Dezembro de 2008. Muito a tempo, portanto.


segunda-feira, outubro 01, 2007

Despertares (Moremi-Savuti, 28.04.2003) *

Ainda não eram 6 da manhã. No horizonte, uma cor púrpura tingia o céu, prometendo mais um dia de calor. Pela picada, o camião Mercedes avançava com os faróis ainda acesos, espalhando à passagem uma fina película de areia dourada. Ainda estávamos dentro das fronteiras da reserva de Moremi. Mas se a viagem corresse sem acidentes, chegaríamos a Savuti pelo meio do dia.

Na maior parte do tempo, fazíamos o caminho a dormitar. Uns encostavam-se costas com costas, num precário equilíbrio a que os solavancos não ajudavam. Outros deitavam-se agarrados aos sacos-cama, tentando combater o gelo da madrugada. Ao sexto dia em África, já estávamos habituados a descansar no meio do desconforto.


De vez em quando, uma raiz mais atrevida emboscava-se na estrada e atirava ao ar uma ou duas rodas do camião. Como os amortecedores já há dias que davam mostras de cansaço, o Mercedes aterrava na picada no meio de um estrondoso ribombar de molas e aço.

Depois do solavanco, ficava o caos. As mochilas tombavam dos bancos vazios que ocupavam, os chinelos só voltavam a aparecer três fileiras mais à frente e ouviam-se um babel de imprecações. E, ocasionalmente, um ou outro passageiro que tinha sido apanhado na voragem era visto a levantar-se do chão da coxia, inspeccionando um novo arranhão num joelho ou cotovelo.

Nessas alturas, estimulado pelo safanão, pelo chilrear das rolas ou pelo Sol que ia mostrando o cocuruto, havia quem desse jeitos de acordar. Abria os olhos num arregalo, voltava a endireitar-se no banco e ocasionalmente bocejava e espreguiçava-se como se estivesse decidido a começar o dia.

Só que então voltava-se a sentir a lona dos assentos ainda húmida da noite. E percebia-se que o bocejo fizera uma pequena nuvem no ar ainda frio. Então, puxavam-se as mangas da sweat-shirt pelas mãos abaixo, reencaixava-se a cabeça entre os ombros e esperava-se alguns gélidos minutos pelo sono que haveria de reaparecer.


* Texto escrito em meados de 2005 e hoje publicado como análise comparativa à madrugada do último Sábado em que o meu filho se comportou como um hipopótamo raivoso.

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domingo, setembro 30, 2007

A Morte em pele e osso

É automático: sempre que oiço a palavra Bologna penso nas camisolas do principal clube da terra. São azuis escuras e vermelhas escuras, com cada cor em sua risca grossa ao alto. No conjunto, são tão alegres quanto uma tarde de Inverno. Mas, sobre os relvados enlameados do Norte de Itália, formam um quadro duro e vigoroso, como armaduras alinhadas para a batalha.

No segundo seguinte, penso na mesma camisola já vestida por um checo de cabelos longos e 1 e 94 de altura. Meio tanque de guerra, meio reincarnação de Átila, Tomás Skuhrávy era sobretudo um temível ponta-de-lança com futebol feito de tensão e músculo. Lembro-me dele e revejo de seguida golos pouco artísticos ao segundo poste ou cabeçadas a dizer que sim a um cruzamento de El Pato Aguilera. E é mais ou menos por essa altura, ao recordar o nome do uruguaio, que me dou conta do erro.

Estava novamente confundido. Se era a quinta ou a sexta vez já não tinha a certeza. Certo é que me tinha voltado a enganar. Não nos cenários, pois as camisolas sombrias e o possante Skuhrávy eram bem reais. Só que tudo isto existia numas centenas de quilómetros ao lado. Não em Bologna, mas em Genova.

É que desde que me lembro que, mesmo não conhecendo nenhuma das cidades, sempre confundi uma com outra. Se a Genova-portuária-e-futebo- lística ainda ocupava um pedaço do meu imaginário, já para Bologna falhavam-me as referências. Verdade seja dita, Bologna não passava para mim de um familiar mal-entendido. Só que estava destinada a não permanecer assim durante muito tempo.

Há três semanas, de um modo pouco menos que acidental, descobri Bologna. Imediatamente, senti-me a ser aspirado para um ambiente de sombras. Bizarra e espectral, esta cidade de antiga cepa fez-se assim um desejo para um dia de aguaceiros.

Tudo poderá começar pelos corredores do Museo Zoologico, onde olhares vítreos espreitam por detrás dos nossos ombros. Ali, macacos, ursos e lagartos parecem ter sido tocados pelo Doutor Frankenstein da taxidermia. Hoje nada lhes resta que tenha a ver com vitalidade. São apenas espécimes com esgares de dor ou raiva e que parecem ter sido torturados mesmo após a morte. Como se os alfinetes do taxidermista os tivessem esvaziado da sua alma, legando-lhes uma sub-vida de sofrimento. Nas prateleiras do Museo Zoológico, alinham-se num espectáculo de monstruosidades legendado em letra antiga. É que algumas daquelas estatuetas tinham sido esvaziadas das suas entranhas há quatro séculos atrás. E hoje ali estavam em desesperado abandono, parecendo exibir a expressão que tinham no segundo anterior ao momento da sua morte.

No número 48 da Via Irnerio fica o Museo delle Cere Anatomiche. Ao contrário do que o nome poderia fazer supor, não se reedita aqui qualquer Madame Tussaud. Aliás, não se aconselha a visita a quem procura o divertimento leve. Aqui, mesmo com a incógnita do que é verdade ou mistificação, o que se mostram são os infelizes desenlaces da vida humana.

Aos moldes em cera a retratar malformações genéticas juntam-se os esqueletos fetais atirados à condição de curiosidades médicas. Não fosse o pudor com que se olha a morte infantil e ter-lhe-iam chamados o Museu das Anormalidades. Fiquei com que a ideia que quem ali entrar passará a ter uma imagem bem vívida de pesadelo quando ouvir “Menino ou menina? Que venha perfeitinho é o que interessa”.



Ainda tocada por um véu de trevas mas já fora do velho centro da cidade, fica a Chiesa della Santa. É aqui que, em pose de macabra santidade, descansa Caterina de Vigri.

Do mesmo modo como a cidade de Bologna terá mais para ver do que estes escuros caminhos, também esta Igreja da Santa nos aparece como um belo templo de dourado silêncio. Mas é fora dos nossos olhares mais imediatos que, sentada num trono de morte, fica a sua mais valiosa relíquia: a múmia negra de Catarina.

Num quadro de inesperada ternura, Catarina está vestida de freira e tem nas suas mãos uma cruz dourada. Já assim está há muitos séculos, imóvel e incorruptível, escurecendo dizem que pela influência das velas. Já vi múmias no Museu Egípcio do Cairo e, na sua perseverança, parecem ter uma expressão de quem fixa por muito tempo uma lâmpada. Aguentaram quedas de civilizações, mas ninguém as arrisca à ininterrupta exposição. Assim, de vez em quando são recolhidas e trocadas por outras.

Mas, ao que é dito, Catarina não abandona a vigilância da sua congregação. A sua face e as suas mãos estão negras e o seu rosto parece cada vez mais definido. Só que, no seu pedestal, Catarina parece consciente da sua santidade. E, apesar de horrível, não deixa de me assombrar para uma visita à atmosférica Bologna.

Hoje, sei que se foram os breves segundos de dúvida: o checo jogava no Genova.


Agradecimento a Curious Expeditions pela epifania e pelas imagens (excluindo a primeira, de autor desconhecido).

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terça-feira, setembro 18, 2007

Maine no Outono

Para mim, a América é verdadei- ramente uma questão de tempo. Há-de chegar um ano, na altura que for a certa. Sem pressas. Porque a minha América – o país – também tem que esperar pela roda dos anos. Paradoxalmente, é uma América paciente e contemplativa. Porque tem tudo a ver com o tempo.

Quando for Outono, vou querer estar no Maine. Se tiver sorte, hei-de dar por mim a acordar numa cabana com coisas penduradas e tinta branca a esfoliar-se das paredes. Chegando à janela, vou encontrar o quadro que me puxou para aqui: a folhagem em múltiplos tons de fogo. E está sol. Deve estar frio, mas também está sol.

Ao sair para o bosque, puxo a gola para cima. Vejo ao longe uma antiga camioneta Ford. Está abandonada e só mesmo a ferrugem é que lhe encontra utilidade. Olho para dentro do tablier e encontro uma pequena poça de água junto aos pedais. Depois, sigo o carreiro, pensando que no caminho de regresso tenho que levar lenha para a lareira.

Durante meio quilómetro, acompanha- -me um ribeiro que gargareja de encontro às pedras. Depois, chego à ponte. É uma ponte antiga de madeira, daquelas cobertas. O sol continua a acompanhar-me e agora está a espreitar através das frinchas na madeira.

Quase sem me aperceber, o porto surge-me à vista, aos pés de um horizonte cor de chumbo. Enquanto o tempo passava, as nuvens foram-se encastelando por cima dos barcos que hão-de sair à pesca da lagosta. Em fundo, o Oceano promete o apocalipse em ondas de seis metros. É o Inverno que ameaça, endurecendo os dias dos que aqui vivem todo o ano.

Percebo que a partida já esteve mais longe. Marchando inexoravelmente, Novembro está quase no fim. Então, sinto que outros sítios me esperam. É tempo de New York.

Fotografias de ToniLuca, Vincent's Images, shrike1964 e l'insouciant1

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terça-feira, setembro 11, 2007

Lição de Geografia

- Recent polls have shown a fifth of Americans can't locate the US on a world map. Why do you think this is?

Miss South Carolina, pestanejou duas vezes e, sem perder a face, respondeu:
- I personally believe... that U.S. Americans are unable to do so... because, uh, some... people out there in our nation that don't have maps... and I believe that our education like such as in South Africa... and, uh, the Iraq... everywhere like such as. And I believe that they should, uh... our education over here... in the U.S. should help the U.S. and should help, uh, South Africa and should help the Iraq and the Asian Countries. So will be able to build up our future.

A parte final é apenas uma montagem, mas isto aconteceu há um par de semanas no extraordinário Miss Teen USA.

Já para si, que até sabe as capitais do Corno de África, isto não vai custar nada. E, caso queira, pode até escolher ser loura.

Só uma nota: faz vício.

sábado, setembro 08, 2007

De tapete voador

Noite após noite, a opinião cresce na cabeça de Sven: o Médio Oriente é uma região com fraco saneamento básico onde gente de discutíveis ambições se anda a explodir em mesquitas e centros comerciais.

À distância de quatro ou cinco fusos horários e no conforto do prime time, tudo o que o dinamarquês (ou um canadiano ou austríaco) vê parece desafiar a inteligência. Mulheres de negro a prantearem com as mãos no ar e um sapato sem pé que jaz numa rua coberta de detritos. Pode ser em Ramallah, Tel-Aviv ou Kerbala, “confesso que já não presto atenção”. Judeus ou muçulmanos, libaneses ou iraquianos. Vista do Ocidente, a banalidade já fez esmorecer a consternação.

Ninguém duvida que no Médio Oriente as diferenças de opinião são frequentemente discutidas num alto patamar de brutalidade. Aqui, poder-se-ão criar inimigos mortais apenas por se ter nascido. Seja-se do mesmo país, da mesma raça ou da mesma religião. O sunita não partilhará do prato do xiita e o sírio será olhado com desdenhoso receio pelo libanês. Mas, na sua voraz senha colonialista ou imperialista, os Ingleses, os Franceses e agora os Americanos nunca fizeram mais do que piorar o que vieram encontrar. Tudo começa na própria definição de Middle East, vastamente criticada pelo seu eurocentrismo (mais de metade da população mundial está a Oriente do Médio Oriente). No seu papel de umbigo do mundo, as potências europeias decidiram ainda decretar a prioridade à identidade nacional e à política de fronteiras sobre a visão religiosa.

Historicamente, a raiz dos repetidos fracassos ocidentais no Médio Oriente tem sido a despreocupada ignorância. Ultimamente, na mesma linha de ligeireza, a exportação principal são sistemas políticos: ”Wolfowitz, você que é filho de uma família de judeus de Varsóvia vai-me ajudar a pôr aqueles iraquianos a viver em democracia. Não se preocupe muito com detalhes. Tenho passado anos e anos a negociar petróleo com os Árabes. Eu vou coordenando os passos”. Porque tudo isto se passou praticamente anteontem, ainda nos consegue parecer mais risível. Mas como, Senhor Bush, a ignorância não passa de uma etapa a caminho da luz, aqui vai.

Faz sentido começar pela religião. A principal religião no Médio Oriente é o Islamismo. Entenda-se assim que não há nada com o nome de Muçulmanismo. Há é ser-se Muçulmano, ou seja professar o Islamismo.

Maomé é tido como o fundador da religião islâmica e o último mensageiro da palavra do Deus Alá. Mas, ao morrer sem sucessão, deixou aberto o caminho para a divisão do Islamismo em dois ramos principais: o Sunismo e o Xiismo. Os primeiros (cerca de 85% do número total de muçulmanos em todo o mundo) defendiam que quatro califas eleitos deveriam assegurar a continuidade, enquanto os Xiitas opinavam que Ali ibn Ali Talib – como primo e cunhado de Maomé – seria o legítimo sucessor.

Fechando o capítulo religioso, entro no étnico: ser Árabe não é o mesmo que ser Muçulmano. É-se Muçulmano como se é Cristão e é-se Árabe como se pode ser Chinês. E um Chinês pode ser Muçulmano, assim como há Árabes Cristãos. E Árabes Judeus.

No Médio Oriente, abundam os grupos étnicos: já se falou dos Árabes, mas ainda existem os Persas (sobretudo vivendo no Irão, onde apenas 3% da população é Árabe), os Turcos, os Judeus (cujo nome da religião é o mesmo do grupo étnico; ou seja, há seguidores de Alá que pertencem há etnia judaica), os Azeris, os Berberes, etc.

O Médio Oriente não é fácil de compreender. Eles mesmo, os que lá vivem, têm grandes dificuldades de entendimento. Mas, nesta linha de consenso e paradoxo, uma coisa tenho que dizer: sinto-me desejoso de lá regressar. Já vão fazer cinco anos que no Cairo vivi os mais atmosféricos e intemporais momentos da minha vida de viagens. E se há uma cidade, também uma capital, onde sinto que posso esperar o mesmo é Sana’a.

Pelos desertos e montanhas do Médio Oriente, não deverão faltar terras que não mudaram de rosto em séculos de existência. Só que essas estarão separadas por estradas de morte e desfiladeiros insuperáveis. A Sana’a, a capital do Iémen, chega-se de avião. Mas deverá ser percorrida de tapete voador…

No último ano, Sana’a foi-me apresentada pelo Trofimov, um ucraniano com cidadania italiana e experimentada pelo Horwitz, um judeu americano. Anteontem, o Eric Hansen (que ainda não conheço) prometeu falar-me mais daquele país onde todos mascam khât nos tempos livres e as mulheres têm uma média de 7 filhos.

Mas, não deixando de agradecer todas as ajudas, o que quero mesmo é cruzá-la de tapete voador.

Infografia de FOXnews.com e fotografias de Mideastimage e Eesti

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sexta-feira, agosto 31, 2007

Ventos do Norte

É na Dinamarca, na península da Jutlândia, que fica o farol de Rubjerg Knude. Durante quase 70 anos, foi um sinal de esperança para os navios que faziam as agrestes rotas do Norte. Em 1968, a subida das areias impediu-lhe a luz de ser vista no meio das intempéries. Hoje, é apenas mais uma prova de que o Mar do Norte é uma batalha perdida à nascença. Ali não se dão tréguas.

Já na Escócia, na estreita Crovie, eu tinha sido testemunha dos seus rigores. Ainda naquela altura, a terra mostrava as marcas de um terrível dia de Janeiro do ano de 1953. Os ventos árticos tinham empurrado um descon- trolado Mar do Norte costa adentro e feito de Crovie uma aldeia deserdada.

Cinquenta anos e sete meses depois, percorri a Costa de Banff e parei em Crovie. Não vi lá absolutamente ninguém. O Mar do Norte brilhava debaixo de um morno sol de Agosto.

Imagem de Rubjerg Knude propriedade de cheeweng

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quinta-feira, agosto 30, 2007

Ancorados no cemitério

Por motivos que explico com dificuldade e na verdade nem eu bem entendo, tenho vontade de ir à Mauritânia.

É um país pobre e desolado que nasceu das areias do Sahara e que pelas mesmas areias é habitualmente coberto. Para a Mauritânia não há pacotes turísticos e até mesmo os backpackers tendem a olhá-lo com um distante sorriso de complacência. Na verdade, é extraordinariamente provável que ao longo da nossa vida, ninguém nos diga com um entusiasmado esfregar de mãos: “Amanhã, parto para a Mauritânia. Nunca mais chegava o dia!”

A Mauritânia tem um fado geográfico que pesa tanto como o seu terrível sol do meio-dia e que não faz suscitar grande fervores à sua visita. Entre fronteiras, pouco mais há que paisagens de interminável e poeirenta planura. Ao sair-se do país, tem-se a Norte os milhões de minas terrestres do Sahara Ocidental, a Nordeste a imprevisível Argélia e para Leste os bandidos que vigiam os postos fronteiriços com o Mali. Ou seja, lá dentro pouco há que fazer, mas sair pode não ser a melhor opção. Mesmo assim e tudo pesado, tenho vontade de ir à Mauritânia.

Habituei-me a pensar que um país com magros pontos de indiscutível interesse dá-nos sempre algo que os outros não têm. Aqui, porque tudo é árido, cada novo encontro tem um sincero empenho, um verdadeiro toque de vida. E de cada vez que vemos a tremeluzir aos 47 graus que aquecem o horizonte um qualquer volume (mesmo que coberto da ferrugem dos anos) podemos estar a cruzar-nos com uma lembrança para todo o sempre.

Apesar de ninguém saber muito da Mauritânia, há uma mão-cheia de pessoas que lhe conhece um feito particular: aqui corre o que é alegadamente o mais longo comboio em todo o mundo. Vai carregado de minério de ferro e as suas 4 locomotivas chegam a arrastar mais de duzentas carruagens até à cidade de Nouadibhou.

Em Nouadibhou, espere-se encontrar uma terra esquálida, com rumores de ser manipulada pela máfia nigeriana e aproveitada para campo de treino da Al-Quaida. É só a segunda maior cidade do país, mas já é capital no contrabando de meteoritos e um dos principais portos de embarque dos clandestinos que procuram as Canárias. Enfim, lá trafica-se em expectativas.

Contudo, se um dia chegar a NDB é para perguntar onde fica a baía. Alguém me há-de responder, estranhando o porquê de tão insólito destino. Ali só há areias manchadas e carcaças de metal ferrugentas. Mas é este puzzle em constante preenchimento o que mais me move até à Mauritânia. Porque é aqui que cerca de 300 embarcações se juntam num dos mais estranhos cemitérios de que há memória. Umas não resistiram aos humores do Atlântico, outras foram ali deixadas para morrer. Não é um ambiente de cor e alegria. Mas os cemitérios são assim mesmo.

Imagens de TAFAT e Google Maps

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domingo, agosto 26, 2007

O Grande Branco

Há quatro anos e meio que já conheço preços, itinerários e rotinas. Não é difícil: por 115 €, o histórico Brian McFarlane empresta-nos uma jaula e larga-nos nas águas quentes de Gansbaai.

Depois, é esperar que o engodo o atraia para junto do Predator II e assistir gelado aquele olhar de morte que nos rodeia uma, duas, muitas vezes.

E sempre que me voltam a reavivar a ideia (agora a culpa foi da Forbes Traveler), cá fico eu a pensar que já faltou mais tempo para descer.

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Fogos Gregos

Naqueles dias da Idade Média, a credulidade era uma auto-estrada para as vozes em surdina: os gregos tinham conseguido dominar o fogo.

Provavelmente, teria sido algum embriagado veterano das batalhas contra os muçulmanos. Ele mesmo teria atirado pela amurada aquela mistura pastosa que se incendiava na água e, serpenteando, levava o incandescente terror às embarcações do Islão. Ficava assim conhecido o Fogo Grego, uma arma de guerra que nunca veria o seu segredo revelado.

Hoje como ontem, a Grécia é falada pelo fogo assassino. Ainda há três semanas, a água defendia-me dos 39 graus de Atenas e não se cansava de mim na recatada ilha de Sifnos.

Hoje, a que resta é para defender a vida. Porque os gregos já não dominam o fogo.

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sexta-feira, maio 11, 2007

Futuro de ponta

"Não há muito a dizer sobre viagens de avião. Qualquer coisa notável tem de ser desastrosa, por isso um bom voo é definido em negativas: não fomos desviados, não nos despenhámos, não vomitámos, não nos atrasámos, não ficámos enojados com a comida."

Paul Theroux

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terça-feira, maio 08, 2007

O 20


Há 347 dias que esta folha está em letargia.

Mexe-se hoje em celebração: fez agora 20 países que tenho andado por aí.

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sexta-feira, maio 26, 2006

Kkkkkrruk-uuu-u-u (Moremi, 2003.04.27)

Tivesse eu que nomear uma coisa - uma só - que me recordasse com prazer dos dias no mato e ela seria o mais improvável dos meus prognósticos iniciais.

Elas também cantam por cá, mas é lá que a voz rouca das rolas mais enche as tardes. Cada uma com o seu canto, todas elas a maior das saudades de África.

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Seguindo Thesiger

Nestes dias em que o petróleo dita os modos de viajar e os destinos são um grande pacote litoral, traz conforto visitar os tempos dos Indomáveis.

O último dos grandes exploradores britânicos, Sir Wilfred Thesiger (1910-2003) nunca abandonou o desdém pelas modernas perversi- dades, sempre trilhando num pedregoso calcorrear de caminhos de fome e cansaço, frio e morte.

Ontem, terminei na página 350 uma jornada de seis anos em que ele partilhou com os beduínos os areais do Sul da Arábia. Ocorreu-me que já ninguém viaja assim e que os próprios beduínos já vencem as dificuldades do deserto em jipes com ar condicionado. Hoje, procuram-se resorts com tudo incluído e acesso protegido, não vão os nativos decidir entrar com olhares desafiantes e túnicas transpiradas. Hoje só resta a exausta sombra do explorador, dobrado que foi a um mundo que não pediu.

Mas porque, neste canto, nunca dos anseios se desistirá como vãos, passo a transcrever com respeitosa vénia:

“De manhã observei Mabkhaut a soltar os camelos para o pasto e, à medida que estes se libertavam, momentaneamente poupados do duro trabalho a que os submetíamos, apercebi-me de que só conseguia pensar neles como comida. Alegrei-me quando desapareceram de vista. Al Auf aproximou-se e deitou-se a meu lado, cobrindo-se com a sua capa. Penso que não falámos. Eu estava deitado com os olhos fechados, insistindo para comigo: «Se estivesse em Londres, daria tudo para estar aqui». (…) Preferia estar aqui, faminto como estava, do que sentar-me numa cadeira, empanturrado de comida, a ouvir rádio. (…) Mantive-me desesperadamente fiel a esta convicção. Parecia-me infinitamente importante. Pô-la minimamente em causa seria admitir a derrota, renegar tudo aquilo em que acreditava.”

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quarta-feira, maio 24, 2006

Por Xakanaxa (Moremi, 2003.04.27)

Era hora de sesta no acampamento de Xakanaxa. Como de costume, só eu me mantinha acordado. Sempre achara um desperdício entregar duas horas ao sono, quando a selva fervilhava em meu redor. Ainda que o guia tivesse dado instruções para não abandonarmos a clareira e até a insuspeita Lonely Planet confirmar o perigo: “Watch out for wildlife in Xakanaxa: one reader was chased by elephants in 1999 and an American boy was tragically killed by hyenas here in 2000”.

Assim, subi para a cabina do camião e deixei-me lá a ler um livro sobre os répteis do Okavango. Pus os pés no tablier e, enquanto a sombra enchia Xakanaxa, vi-me como o único convidado das melodias dos pássaros. Aliás, só sairia dali para visitar Douglas, o nosso WC.

Habitualmente, o Douglas ficava a uns cinquenta metros do acampamento, escondido atrás de uma árvore. Em Xakanaxa, estava um pouco mais longe, forçando-nos a uma caminhada por um bosque de acácias novas. Apenas alguns passos me separavam da árvore quando senti um movimento. Olhei para o meu lado direito e vi-o a fitar-me. Era um leopardo.

Ocorreu-me que devia parar. Então, fiquei a contem- plá-lo. Apenas. A menos de dez metros de mim, ele permanecia estático. Até que decidiu agir. E, curvando sobre si mesmo, fez meia-volta para o bosque. Não tinham passado mais que cinco segundos.

Mudo e estático, ali fiquei por mais um minuto, tentando perceber o que fazer a seguir. Passou-me pela cabeça que os leopardos costumam subir às árvores. Olhei para cima. Por outro lado, ele podia estar a rodear-me. Olhei para baixo e pus-me a tentar ouvir se abria caminho junto às folhagens dos arbustos. Então, sem nada ver nem ouvir, comecei vagarosamente a andar de lado, até chegar ao acampamento ainda adormecido. Entrei de novo no camião e voltei a pegar no livro. A cada parágrafo, olhava pelo retrovisor para o canto da clareira. Mas, estranhamente, nunca foi medo o que senti. Tudo tinha sido demasiadamente rápido e paralisante para poder sentir qualquer coisa.

Sentir o medo terrível, o pânico descontrolado, tinha sido na noite anterior. Era a primeira noite no famigerado Xakanaxa e a fogueira ia perdendo fulgor. Já pouco se falava e os olhares fixavam-se hipnoticamente nas chamas, antecipando a entrada nas tendas. Então, vindo da escuridão, tão alto como um comboio a aliviar vapor, aquele ruído cruzou os ares. Não era um grito nem um rugido, era mais como um gigante a fungar junto às nossas cabeças. Os gritos vieram depois: eram as raparigas do grupo, transidas de medo. Eu não gritei. Saltei da cadeira de lona, quis fugir para longe e acabei no abraço apavorado da Fátima e da brasileira Sybille. Já o medo foi o mais fisicamente intenso que alguma vez sentira. Mesmo não passando de um dos menos interessantes capítulos da história de Xakanaxa.

Gys, o guia, dormia todas as noites em cima do atrelado do Mercedes. Pela manhã, interpelei-o enquanto ele fazia o pequeno-almoço. “Yes, I heard”, respondeu ao dobrar-se para apanhar uma lata de cacau instantâneo, “it was an impala. They do those noises when they are afraid of something”. Fiz um sorriso amarelo e desviei-me. Afinal, o terror de Xakanaxa não era senão o mais assustadiço dos mamíferos da selva.

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terça-feira, maio 23, 2006

Em morte lenta (Moremi, 2003.04.26)

Reforçados de mantimentos e expectativas, entrámos em Moremi. Chegavam os grandes parques e as caminhadas pelo mato ficavam carimbadas como proibidas. Agora, só mesmo empoleirados no camião Mercedes. Era tempo de game drive.

Pelos trilhos de terra batida, íamos cruzando vagarosamente as vidas das impalas, zebras e girafas que apenas tínhamos espreitado fugazmente nos game walks. Mesmo devagar, um quarto de hora bastava-nos para termos mais encontros que em três horas a pé pela savana. Imersos naquela babel, a confissão de Gys deixou-nos por isso intrigados: “I never saw a killing”.

Uma hora no sofá com as corridas e os rugidos do National Geographic eram o suficiente para uma única chita abater quatro impalas. No entanto, em quase vinte anos de Krugers, Serengetis e Okavangos, o nosso guia nunca assistira à corrida, ao salto e ao epílogo de uma perseguição bem sucedida. Era na selva que ele fazia a vida, mas a morte só a vira passar na TV. Talvez fossem as manias do destino.

Então, ele apontou para o longe: “Some- thing is happe- ning there”. No chão, uma enorme mancha preta balouçava sem que percebêssemos porquê. Era como se um estranho vento estivesse a impor a sua força sobre um corpo inerte. Uma dezena de metros à frente, já Gys descodificava a cena: “Four lions. They killed a buffalo”.

No meio da erva seca, o tom alperce das suas peles era a camuflagem perfeita. Dois dos leões vigiavam os oportunistas que se tinham juntado (algumas hienas e uma multidão de abutres) e outros dois alimentavam-se das entranhas do búfalo, manipulando a carcaça de meia tonelada sem esforço aparente. Debruçados no Mercedes, perdemo-nos no tempo. O sol começava a descer no horizonte e, mais uma vez, Gys tinha chegado no meio de uma refeição.

Regressá- mos pela manhã para encontrar quase tudo na mesma. Só mesmo o búfalo estava a caminho de ser uma massa disforme, onde apenas as ossadas mantinham a forma do que ele já tinha sido. Um leão espreguiçava-se rolando sobre o dorso, outro bocejava sonoramente. Os outros dois não tinham perdido o apetite, para teste da paciência dos abutres. Dessa vez, ficámos menos tempo. Mas voltaríamos ao fim da tarde, para deparar com a mais extraordinária cena de toda a viagem.

Nessa altura, os quatro leões mantin- ham-se por ali, rasgando os últimos músculos da sua presa. Os abutres tinham duplicado em número e já partilhavam os ramos de uma árvore morta com alguns marabus. Estranhamente, não se viam hienas, mas entretanto tinham aparecido dois crocodilos. Sentia-se no ar que a refeição dos leões não demoraria muito mais. Em breve, os necrófagos sentar-se-iam à mesa.

O Mercedes estava resguardado num bosque, parado à saída de uma curva da estrada de areia. E com o interesse a esbater-se, preparámo-nos para partir. Até que nos apercebemos de um súbito restolhar: eram os crocodilos a voltarem à água. E, junto a eles, um viajante solitário desmontava do capot do seu Defender e, atirando-se para trás do volante, gesticulou na nossa direcção apontando depois para o outro lado da curva. Nada conseguíamos ver, pois o arvoredo tapava a saída da curva. Mas, obviamente, algo se estava a passar.

Foi então que fomos autentica- mente colhidos por uma temível locomotiva de múscu- los e convicção. A cinco metros de nós, numa passada marcial, eles iam surgindo. Um… dois… três… quatro… sete… onze leões seguiam o trilho de areia que fazia as vezes de estrada e dirigiam-se para a peça de carne. Não tenho memória de mais colossal demonstração de força. Gys, que por ali já devia ter visto quase de tudo, esbugalhava os olhos: “The other lions are escaping. Never saw it. Never in my life…”. Enquanto os abutres esvoaçavam para todos os lados, os novos proprietários da carcaça mediam forças, rugindo e ameaçando-se entre si. O que restava do búfalo era escasso para tanta vontade. Rapidamente o submergiram, rasgando com os dentes os magros despojos de um dia de banquete.

Ao longe, os quatro leões fugitivos assistiam impassíveis. Junto a nós, Gys estava em estado de êxtase. Não fora para hoje a morte ao vivo. Mas o espectáculo da morte pode ser uma longa transmissão em diferido.

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sexta-feira, maio 19, 2006

Geografia Vitoriana

Eram 4 da tarde de um Domin- go de 1965. Uns poucos tinham ido de carro e a maior parte na excur- são, mas estavam quase todos para Tomar. E quando o Vitória jogava fora, o bairro ficava entregue aos velhos e a algumas mulheres. Há que dizer que, depois dos jogos com o Tramagal e com o Torres Novas, já não havia hipótese de subir à Segunda do Nacional. Mas, mesmo assim, acompanhava-se o Clube. Aproveitava-se e conhecia-se a terra.

Treze anos depois, o entusiasmo estava ao rubro. A equipa subira à Terceira na época anterior, e, fosse qual fosse o campo, de Bucelas a Campo Maior, de Borba a Benavente, não faltava o grito: “Vamos embora, Vitória”. Fica para a história das desilusões que, nas últimas jornadas, o Elvas passou à frente e adiou o sonho da Segunda Divisão para outros anos. Mas, que remédio, ao menos ia-se passeando, comendo e rindo.

Na época seguinte, com 9 anos, já eu respondia de ponta de língua quando me perguntavam se era Benfica ou Sporting: “Sou do Vitória”. Lembro-me de ter visto um ou dois jogos, mas não sei com quem. Aliás, só muito mais tarde é que soube que tínhamos ficado outra vez em terceiro no campeonato. E que o Oriental e o Estrela da Amadora é que tinham subido à Segunda.

Aí, pese toda a esperança de um bairro de fibra (“Para o ano é que é”) e sem que ninguém o adivinhasse na altura, começou o lento declínio. Das camisolas vermelhas mais aguerridas de toda a Lisboa e da geração que tinha ido a Tomar em 65. E nunca mais o Vitória esteve perto de subir à Segunda.

Os campos passaram a ser mais pequenos, os balneários mais acanhados e no Distrital deixaram de fazer sentido as excursões. Mas foi então que, deserdado dos tempos áureos, comecei a seguir o VCL. E a alinhavar toda uma geografia que se materializava em campos de futebol. Domingo sim, domingo não, primeiro à boleia e mais tarde no meu Corolla de 72, também eu me juntei ao grito.

Na Charneca (que parecia uma praça de touros), no Operário (quase um derby), em Camarate (ao lado de um cemitério), nos Olivais (outro cemitério), na Musgueira (onde levei umas estaladas), no Damaiense (onde éramos sempre roubados), no Palmense (onde sempre perdi), no Porto Salvo (um metro da linha lateral à linha de grande área), no Domingos Sávio (onde as duas linhas quase coincidiam), em Agualva (os melhores couratos), em Santa Iria (porrada e invasão de campo), no Unidos do Bairro Padre Cruz (invasão de campo e porrada, acho), etcetera, etcetera… Enfim, poderia tranquilamente e de memória juntar-lhes mais vinte pelados. Ou trinta.

Hoje, os meus Domingos têm outros rumos. Fico menos vezes rouco e já não entro em casa de botas enlameadas. E, a esbracejar na I Divisão B do Distrital de Lisboa, o Vitória até está numa espécie de Segunda dos Mais Pequenos.

Mas, e porque há afectos que nos acompanham até ao fim, sou orgulhosa e incondicionalmente do Vitória. Há quem lhe chame, porque sempre assim lhe chamaram, Vitória da Picheleira.

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quinta-feira, maio 18, 2006

O evitável cozinheiro (Maun, 2003.04.25)

Nunca saberei se por graça da providência, Ralph nunca cozinhou para nós.

Ele até era cozinheiro de profissão, tinha uns bem fornecidos cem quilos e um ar bonacheirão quando se ria com as suas próprias piadas. Ou seja, reunia os requisitos. Mas o facto de cozinhar para a tripulação maioritariamente filipina de um navio mercante não me inundava de confiança.

Ele estava ali como eu, em viagem. Por isso, até nem seria suposto que cozinhasse. Contudo, desde os primeiros dias que me arrepiava a ideia de poder vir a comer as suas receitas. É que, não encontro outra forma de o dizer, os intestinos do Ralph gaseavam-nos a cada dez minutos numa expulsão borbulhante. Quando andávamos pelo mato, era sempre mais provável que o cheiro fétido tivesse origem humana que animal. O que, atendendo às espécies vizinhas, não deixava de ser uma proeza.


Dias mais tarde, mergulhei numa lagoa e descobri um mexilhão. Com uma interjeição gutural só possível num alemão da Baviera, Ralph revirou as órbitas e propôs entusiasticamente cozinhá-los em molho inglês com tâmaras espremidas. Enojados, os nativos teimavam que mexilhões não eram comida; eu antecipava o vómito ao ver a mistela. Pelo sim pelo não, defen- di-me: “I dived and dived again. That is the only mussel on the lake”.

Numa manhã em Maun, fomos acordados por terríveis imprecações. Ralph, que tinha dormido ao relento, olhava para cima e, agitando o braço direito como um cutelo, invocava um raio que incinerasse todos os pássaros: “Dam birds from hell”. Quando chegámos junto a ele, o saco-cama azul estava semi-coberto de uma poça que, à primeira vista, era vómito. Percebi depois que era caca. Esbranquiçada e a meio caminho para se solidificar. E, descendo do sobrolho esquerdo até ao lábio superior, uma repugnante estalactite de fezes adornava-lhe o rosto vermelho de cólera. Em cima, empoleirado num ramo, um rolieiro-de-peito-lilás parecia trinar divertido ante os gritos da ocasional sanita.

Nesse mesmo dia, um exército de macacos entrou-nos no camião e nas mochilas, levando apenas as maçãs do Ralph: “Dam monkeys from hell”. Decididamente, o delta voltava-se contra o cozinheiro alemão, que, atirando torrões de terra, gritava: “I will roast you with your apples”. Ficou-se no entanto pela ameaça. Aliás, já o tinha dito, nunca cozinhou para nós.

Entre o gasoduto intoxicante e o experimentalista pantagruélico, Ralph não deixava de ser um homem de bom coração. É certo que parecia abusar dos molhos (tanto na flatulência como no fogão), mas era um tipo jovial. Há três semanas recebi um retrato do casamento. Ao seu lado para a vida, estava uma filipina lá do barco. Na boca, um sorriso que eu reconhecia. Estaria a cagar-se?

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quarta-feira, maio 17, 2006

Sete (Okavango, 2003.04.25)

No Norte da Escócia, um velho pescador rematara respeitosamente o nome de Eusébio quando falei do meu país; Rui Costa, il principino, era repetido com lágrimas nos olhos quando em Florença descobriam a minha nacionalidade; e, até num souk de Aswan, o futebol escancarara um sorriso desdentado: “Manuel José da Silva, manager of Al Ahly, the Great”.

Mas já um rotundo “Luís Figo!”, o nosso número sete, era disparo certeiro por todo o globo. Como se fosse um apelido do nome próprio Portugal. Na realidade, de tão frequente, a contra-resposta tornava-se esperada.

A surpresa viria de uma remota aldeia de palhotas perdida nos fundos do Botswana. Era uma terra sem electricidade ou água potável, talvez até sem nome. Mas tinha por lá o Sete.

Talvez até nem sentissem a falta da luz. É que havia um Sete a brilhar e um outro Sete sempre disposto a ajudar.

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terça-feira, maio 16, 2006

Chegaram os Leões (Okavango, 2003.04.24)

Na noite anterior, as hienas tinham andado pelo bosque que circundava o nosso acampamento. Primeiro, os ruídos pareciam da lenha a estalar na fogueira, mas subitamente o Gys apontou a lanterna para trás. E, nas sombras, todos vimos aqueles vultos corcundas a escaparem-se para o meio das árvores. Foi então que alguém perguntou: “Are they dangerous?”

“It depends”, disse o guia, alimentando a fogueira de mais lenha. Durante o dia, eram animais solitários, inofensivos e mesmo cobardes. Mas, quando ficava escuro, juntavam-se para caçar. E, nessa altura, eram evitadas por todos os animais da selva. Até pelos leões.

Olhei de novo para o bosque à minha frente. Nada se via mexer naquela indistinguível massa negra, mas o medo adivinhava-lhes a presença. Então, o Gys continuou. Uma das mais sangrentas histórias do delta com homens envolvidos tivera as hienas como protagonistas. Uma matilha entrara a meio da noite num acampamento e fora descoberta por uma criança de 9 anos. Em pânico, a criança saiu da sua tenda e tentara alcançar a tenda dos seus pais. Mas, com isso, desrespeitou a condição número 1 de uma pessoa na selva: “Never run. If you run, they think you are a prey. If you run, you are food.” Não conseguiu dar mais que alguns passos. Foi abatida por uma matilha de hienas esfomeadas. Só na manhã seguinte é que foi encontrada pela família em desespero. Mas pouco mais restava que as suas ossadas.

De um momento para o outro, sentia-se que a fogueira não aquecia o suficiente. Sentado num enorme tronco de árvore que tinha tombado, eu só esperava que aquele formigueiro na barriga não fosse o fermentar de uma cólica. Ou que qualquer outra necessidade não me obrigasse a fazer 30 metros no breu da noite até ao semi-escondido Douglas, apenas na incipiente companhia de uma lanterna.

Felizmente, nada aconteceu. Aliás, enquanto caminhávamos no primeiro game walk do dia, o sinistro relato da noite anterior não era mais que uma memória esbatida. A manhã estava muito quente e o nosso andamento era esforçado. De tão opressivo, o calor até escondia os animais. Desde que saíramos do acampamento, tínhamos já deixado para trás duas horas de marcha solitária, onde pouco mais ouvíamos que a nossa própria respiração. Ofegante, quase sufocada.

Então, o nosso guia quebrou o silêncio e apontou para longe para a copa de uma árvore. “It’s a killing”, virou-se ele para nós, indicando-nos os ramos cobertos de abutres. Virámos o rumo e seguimos naquela direcção. Estávamos exaustos, mas a expectativa fazia-nos andar mais rápido. E, durante um quarto de hora, aproximámo-nos cada vez mais da árvore. Mas, quando lá chegámos, não havia sinal de vida. Os abutres já não estavam por ali e, estranhamente, nenhum outro animal mitigava a sede na pequena lagoa que existia junto ao arvoredo. Até que a justificação saiu da boca do Gys, enquanto olhava para o chão: “Lions.” Naquele momento, senti o nosso guia invadido de um entusiasmo que ainda não se tinha revelado. E, num tom quase juvenil, acrescentou: “Let’s follow them.”

À frente ia o Gys e o nosso pisteiro, nativo do delta; pelo meio, quatro urbanos em passo titubeante; atrás, com o coração a cavalgar, eu fechava o grupo. Tentando manter a frieza, ia olhando à vez para o lado e para trás, não fossem decidir-se aparecer nas minhas costas. Mas foi junto à cabeça do grupo que se ouviu. Era um rugido terrível. E tal e qual o Gys dissera uns dias antes, sentimo-lo troar no nosso peito antes de chegar aos nossos ouvidos.

Num ápice, o grupo desmembrou-se. Uns agarravam-se aos outros, alguém gritou de terror e houve até quem corresse dois ou três passos até se lembrar da lição (“Never run”). À cabeça do pelotão, o pisteiro, africano e reincidente, mantinha-se estático. O nosso guia virou-se para nós e levantou as palmas das mãos, aconselhando calma. Eu tinha ficado parado ao soar do rugido. Gelara. Então, o Gys advertiu: “Remember, they might want to scare you. So, if they run in your direction, stay still.” Entreolhámo-nos. “Even if they are only two metres from you, stay still.” E concluiu: “Stay still and you stay alive.” Aos poucos, chegámo-nos adiante. E vimos os leões, à sombra de uma acácia.

Deviam ser dez ou doze. Não vi nenhuma juba, mas a maior parte eram adultos. Leoas ou jovens leões. E também algumas crias. Estavam a vinte metros de nós, refastelados e defendendo-se do sol. Um deles bocejou. Uma cria, do tamanho do meu tronco, decidiu exibir-se e rugiu na nossa direcção. Então, tão subitamente como ouvíramos o primeiro dos rugidos, internaram-se no bosque. Deixámos de os ver. Mas não de os sentir.

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sexta-feira, maio 12, 2006

Para lá dos Urais

Tenho saudade. De gente, tempos, sítios, situações, de tudo. Aliás, para mim não há regra para a saudade. Basta que algo relembrável fique para trás para que um par de anos o transforme em saudade. Na realidade, a saudade é a minha forma de cristalizar o passado que faz sentido.

Uma pequena saudade que eu tenho é do tempo passado nos alfarrabistas do Chiado. Lembro-me particularmente das dedicatórias nas guardas (“do padrinho Júlio Alçada pelo teu 9º aniversário”). Dos títulos em itálico ou a imitar caligrafia. E do ar mofado nas prateleiras de topo.

Mas, sobretudo, recordo a emoção daquelas aventuras encadernadas a percalina. Júlio Verne escrevia-as e a Corazzi editava-as, chamando à colecção “Viagens Maravilhosas aos Mundos Conhecidos e Desconhecidos”.

Livro a livro, aos trezentos escudos de cada vez, compunha-se quase todo o legado de Verne. Viagem a viagem, cheguei a 74 volumes impressos no fim do Século XIX e trazidos na ortografia da época: “No decurso do anno de 186… commoveu singularmente o mundo inteiro uma tentativa scientifica sem precedentes nos annaes da sciencia. Os socios do Gun-Club, associação de artilheiros fundada em Baltimore depois da guerra da América, tiveram o pensamento de estabelecer communicação com a Lua, - sim, com a Lua, - atirando-lhe uma bala.”

Conheci “Clovis Dardentor”, fiz “Dois Annos de Ferias”, passei “Cinco Semanas em Balão” e cruzei-me com “Os Piratas do Archipelago”. De passagem, soube que “O Bilhete de Loteria nº 9:672” não estava nas mãos de “Kéraban, o Cabeçudo” e que este também não tinha “Os Quinhentos Milhões da Begun” (nem ele nem “Miguel Strogoff”).

Não cheguei a ler todos os 74. Sei também que dificilmente os lerei. Além de me saber bem esta saudade, não quero arriscar comprometer o sabor que lhes tenho. É que, sei-o bem, Júlio Verne poderá ter sido o mentor desta minha irrequietude.

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quinta-feira, maio 11, 2006

Ke itumetse* (Okavango, 2003.04.24)


Vejo sempre África com olhos de gostar. Pode ser terra de sangue e fogo, mas sempre me desassossega quando sonho em revê-la. Basta despertar às 5 da manhã, sentir o ar frio no nariz e ver a noite a dar lugar ao sol. Apenas isso…

* “Obrigado“ na língua Setsuana.

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quarta-feira, maio 10, 2006

Entre a morte e a vida (Okavango, 2003.04.23)

- Queres ouvir?, perguntei.
- Sim, virou-se na cama.
- É sobre a viagem. Estás com muito sono?, insisti.
- Não, continuou monossilabicamente.
- Olha o que eles dizem: “A montagem dos acampamentos, assim como a carga e descarga dos veículos será realizada pelos membros do grupo”. Ouviste?
- Sim, arrastou a resposta.
- Tem mais: “Existem riscos e perigos que não estão incluídos numa viagem tradicional: esforço físico para o qual poderá não estar preparado; falta de apoio médico convencional devido a estar em regiões remotas; dificuldade de evacuação em caso de acidente”, disse, olhando de soslaio para lhe perceber a reacção. Ainda queres ir?
- Sim. Ainda quero ir, soprou meia a dormir. Mas tu dormes ou não?
- Ah, e olha aqui mais abaixo: “não espere encontrar o conforto e as condições de higiene a que está habituado; a alimentação está muitas vezes enquadrada com os hábitos e costumes locais, sendo impossível comer outra coisa…
- Zé, interrompeu, por favor, temos os dois que acordar cedo. Já percebi que vamos trabalhar, comer mal e lavar-nos de vez em quando. Mas amanhã falamos disso, ‘tá bem? Agora, por favor, acentuando estas palavras, apaga a luz.

Deitei-me. A Fátima não parecia muito preocupada com o desfile de dificuldades. Melhor ainda. Aconcheguei a almofada e pus-nos a pensar na savana africana. Tinha passado um par de minutos quando, do meio do quarto escuro, ela atirou a última pergunta da noite: Há por lá cobras?

Tentando mostrar convicção, respondi logo de seguida: Sobre cobras, nunca li nada. Felizmente, as luzes já estavam apagadas.

Um mês e 17 dias depois, fomos desper- tados às 5 da manhã. Tinha sido a primeira noite numa tenda em plena selva. Não fora fácil adormecer, pois os elefantes faziam-se ouvir do outro lado do rio. E lembro-me de duas vezes em que, no escuro, me ajoelhara no saco-cama para ver se as hienas andavam junto à fogueira. Eu próprio guardara os restos do jantar no atrelado do camião para evitar que elas rondassem a clareira. Mas era tão grande a excitação que o sono não conseguia impor-se de vez. Quando finalmente adormeci, uma voz chamou-me para o dia que começava a nascer. Íamos fazer o nosso primeiro game walk.

Um game walk é uma caminhada pelo mato sem rumo aparente e com o único objectivo de ver animais selvagens. Duas vezes por dia era hora de game walk: quando nascia o sol e quando ele se punha. Eram os momentos em que a maior parte dos animais saía para comer.

Na primeira manhã, andámos meia-hora sem dar com um sinal de vida. Até que, ao curvarmos um bosque de arbustos, vimos a morte à nossa frente. Era a carcaça de um elefante. “An old bull”, disse o nosso guia, após conferir com o pisteiro. “It died a week ago”.

O Gys, de nome Gysbert e pronúncia Raïss, tinha apenas 23 anos. No entanto, chegara à selva aos cinco. Sabia por isso a sua linguagem. Vira numa pilha de ossos a idade do elefante (pois as presas já estavam gastas), apercebera-se do seu sexo (pela envergadura das ossadas) e sabia-lhe a data da morte (pela decomposição da pele ali ao lado). Há seis anos que levava expedições de ignorância por entre os perigos da savana. E, há talvez seis anos, respondia “Ach, it is a safari myth…” quando perguntavam por cemitérios de elefantes. Mas, sobretudo, ensinava o respeito e a consciência como lições de sobrevivência na selva.

Nós seguíamos-lhe cada pegada como se disso dependesse a nossa vida. Por isso, estacámos bruscamente quando o vimos parar, dobrar-se ligeiramente e abrir o braço direito. Algo andava por ali. Entre o receio e a curiosidade, lembro-me de procurar com os olhos de um lado para o outro. Então, a resposta apareceu, camuflada no capim a 3 ou 4 metros de nós. Era uma pitão.

Três metros de pele luzidia e potência muscular. Enfim, o abraço mortal que todos temiam. Por cima do meu ombro, a Fátima arregalava os olhos. Afinal, ali havia cobras. Nunca me tinha parecido importante dizer-lhe que o Delta do Okavango tinha mais de 70 espécies de serpentes. E, sobretudo, que algumas delas se contavam entre as mais venenosas do mundo. Mas, logo ao primeiro game walk, ali estavam elas.

“Just give her room to go”, ouviu-se, enquanto nós contemplávamos em quase hipnose os seus profundos olhos negros e a língua bifendida que entrava e saía da boca. Progressivamente, a admiração pelo esplêndido animal ia substituindo o medo. Até que ela decidiu regressar ao seu tufo de erva seca. E, com o movimento de um chicote, ondulou vigorosamente das nossas vidas para fora.

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