sábado, maio 06, 2006

Da Estação de Chelas ao Túnel da Bruxa

Aos 9 anos fui pela primeira vez ao Túnel da Bruxa. Eu mais o Malheiro, que tinha um tique em que piscava os olhos e acolchoava duas vezes seguidas a base da genitália. Dizia-se na altura que o túnel era lugar de segredos e que vivia lá um drogado. Naquele dia não chegámos a entrar, mas trouxe comigo umas mãos-cheias de caricas estrangeiras que estavam ali atiradas para o pé da linha. Nem sequer vimos nenhum comboio a sair ou entrar, mas ao chegar à Praceta dissemos que lá tínhamos ido. Questões de virilidade, entenda-se.

Um par de anos mais tarde, acabei por lá voltar. Agora, o troço de linha entre a Estação de Chelas e o Túnel da Bruxa já era feudo para quatro putos que teimavam em querer tropeçar numa aventura. O Bibita tinha mais um ano que o resto de nós e já tinha um penteado à futurista, atributos mais que suficientes para autenticar um líder nos recém-chegados Anos 80; o Jaime e eu andávamos juntos na preparatória (ainda andamos, não é, irmão?); e o Brux, mais adiposo e menos afoito, mas com um humor que antecipava a época.

Naquelas tardes de Verão, já não se viam caricas junto ao Túnel da Bruxa. Mas chegámos a ver o Drogado. Só que o medo tinha já sido trocado por um borbulhar na barriga. E, então, atravessámos o túnel. Para quem ia a pé, era muito grande. E, era verdade, tinha segredos.

Tínhamos que andar pelo lado esquerdo da linha, onde havia uma distância maior até à parede do que o lado direito (dizia-se que quem caminhasse pelo lado errado, era apanhado pelo comboio). E havia uma guarita escavada na parede de tijolo carbonizado, que mais parecia um cinzeiro gigante (era onde o Drogado esperava). Mas, por fim, atravessámo-lo. Até com o comboio a passar. Só que, com os segredos descobertos, o Túnel da Bruxa já não era muito mais do que o Túnel de Xabregas.

Então, sem largarmos o nosso troço de linha, passámos ao desafio seguinte: encafuávamo-nos nas estruturas metálicas das pontes e sentíamos a voragem dos comboios que passavam a centímetros sobre as nossas cabeças. Aventura.

Para nós, os comboios cruzavam-nos a vida de um modo que recordo com paixão. Aliás, ainda hoje, adoro o cheiro forte do óleo esquecido por uma automotora nas tábuas da linha. Reminiscências da viagem.


Fotografia da autoria de Joe Paduano

Etiquetas: ,

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Caro amigo: em boa hora vim aqui dar. Deixo-te outra história (mais antiga) do túnel da bruxa, que teve honras radiofónicas na Antena 1, na História Devida e cujo epílogo entronca neste escrito. Qualquer semelhança entre o puto daqueloutra história e penteados futuristas é mais que coincidência. Um abraço

09 maio, 2006 11:37  
Blogger José Costa Alves said...

Confesso que muita era a vontade de repescar dias sobre os quais sinto (sentimos, arrisco) particular emoção. Decidi-me a escrever sobre o Túnel da Bruxa.

A curiosidade levou-me ao Google e aí­ descobri o BicLaranja, o Ramona e o Armando. Entre mim e o Pedro, foram cinco minutos de dedução para perceber que só podias ser tu por ali.

No fim-de-semana, cruzei o BicLaranja. Foram duas boas horas.

Um abraço

09 maio, 2006 13:47  

Enviar um comentário

<< Home