domingo, fevereiro 26, 2006

2002.12.27, Cairo (Parte III)

Nunca quis ter neste espaço um diário de viagem. Prefiro não chamar aqui detalhes que perdem significado fora do ambiente. Só que hoje saio do Cairo a fazê-lo. Perco na habilidade das minhas palavras, mas junto os sons que fizeram o momento. Pode ser que ouvir enquanto lêem vá mascarar o aborrecimento.

Era Sexta-Feira, o dia sagrado do Islão. Completamente deserta, a mesquita de Sultan Hassan recolhera-nos num silêncio de sepulcro. Ali estávamos, dois infiéis ainda em tempo de paz, e pela primeira vez sentíamos o Cairo tranquilo. Estranhamente, mesmo lá fora, a cidade estava muda e inerte. Foi então que surgiu.

Num chamamento do outro mundo, o troar de mil gargantas encheu os ares. Gutural e temível, como dum exército de fantasmas: “Aaaaaaaallaaaaah”. Ainda hoje me recordo da entoação com que aquela prece encheu os ares. Ao mesmo tempo tétrica e profunda, fez-nos estremecer. Por dez segundos, sentimos um medo irracional.

Há um Cairo mais moderno, salubre e turístico. Mas o Cairo que para nós ficou foi o das vidas amargas. E dos momentos atmosféricos. O Cairo da eternidade, que nos maravilhou para lá do indefinível.

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