terça-feira, março 28, 2006

A filha do profeta (Merzouga, 2003.03.02)

Sabia que ele se chamava Aziz, que esperaria por nós em Erfoud e que ia ser o nosso guia pelo deserto. Na verdade, eu só não sabia por onde é que ele andava.

Para já, todos ali diziam chamar-se Aziz e todos eram sobrinhos do Ali Cojo. Mas daquele por quem esperávamos há tempo demais, não havia sinais. E o certo é que, com todo aquele atraso, já íamos cruzar o deserto à noite. Foi então que ele apareceu. Passada larga, nariz de águia e claramente estrábico: era Aziz, o genuíno.

Até chegarmos às dunas, tínhamos o deserto na sua face mais agreste: a hammada. Uma pista de terra com pedras soltas a açoitarem o jipe e um leque de poeira a abrir-se atrás de nós. Foi aí que o ouvi pela primeira vez: “Piano, piano se va lontano”. Abrandei. Não havia como não confiar num homem que parecia ter o deserto cartografado na cabeça.

De repente, vindo do nada, o Aziz tombou um braço sobre a cabeceira e, com ar melífluo, apontou para a Fátima e para a Raquel: “Tu és a Fatimah e tu és a Khadija”. O espanto foi geral. Então, perguntei-lhe:
- Aziz, o nome dela é mesmo Fátima. Como é que sabias?
- Fatimah? Não pode ser! Vocês não são muçulmanos.
- Não. Somos portugueses. Mas eu vivo com ela. E chama-se Fátima.

Só acreditou quando viu o passaporte. Era algo que ele dizia às estrangeiras, uma brincadeira. E aqueles eram nomes comuns entre as muçulmanas. Fatimah era o nome de uma filha de Maomé, como Khadija era o nome da sua primeira mulher.

Íamos já montados nos camelos, a ondular pelas dunas, e o Aziz ainda repetia a história a todos os berberes da caravana. Um a um. Maçando.

Quanto a mim, estava fascinado. O céu tinha a cor mais negra que podia existir e era adornado pelas mais refulgentes estrelas de sempre. Com a gentileza de um trovão, o Sahara começava a fazer parte de mim.

Às cinco da manhã, encontrámo-nos de novo. Desta vez na companhia do sol, que se levantava vermelho atrás das dunas de Erg Chebbi.

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