quinta-feira, abril 13, 2006

À saída do nevoeiro (Tanger, 2003.03.04)

A superstição e os talismãs são proibidos pelo Corão. Mas os muçulmanos do Magrebe parecem acreditar que toda a sorte nunca é demais. E assim, a cada porta, recebem-nos sob o auspício da “Mão de Fatima”.

E, depois da perseguição da véspera e do atropelamento da manhã, também nós acolhemos com agrado a companhia de uma Hamsa. Veio da Jemaa el Fna, a praça maior de Marrakesh. Podíamos ter comprado uns dentes humanos ou um unguento para as dores de intestinos (também por lá haviam). Mas de uma praça que em português se traduz para “Assembleia dos Mortos”, pensou-se que trazer um amuleto não prejudicaria. Afinal, até ao ferry de Tanger, ainda estavam por fazer 660 quilómetros.

A minha fatia particular de boa fortuna não demoraria a chegar. É que, pela primeira vez em Marrocos, comi e gostei. Não de uma tagine ou de uns couscous, mas de um gorduroso cheeseburger. Alcatifou-me o estômago e estimulou-me o ânimo. Entrei no jipe a resfolegar: “Vamo’ lá embora”.

O último barco para a Europa saía às 10 da noite, mas o alcatrão macio da auto-estrada estava à nossa espera em Casablanca. Ainda tínhamos que vencer os engarrafamentos da cidade e desviar dos camiões TIR que ultrapassam pela direita fora do traço exterior da estrada. Mas, quando a noite caiu, ela chegou: a N1.

O que nunca poderíamos esperar, nem nos nossos mais loucos pesadelos, era encontrar ali a mais difícil condução dos últimos dias. Ali, não estava um tapete de alcatrão. A Casablanca-Asilah deixara de ser uma auto-estrada e era agora uma sombra negra com 10 metros de comprimento. Ou seja, aqueles que o nevoeiro me deixava ver.

Durante uma centena e tal de quilómetros, pouco mudou. O sopro branco do Atlântico continuava a afrouxar o nosso ritmo e a acelerar os nossos nervos. E, no tablier, o relógio parecia andar mais rápido que nunca. Nos bancos de trás, rezava-se. Rezava-se mesmo. Mas não propriamente para chegarmos ao barco a tempo. Agora já era para chegarmos em segurança. Pensando bem, quando estamos num carro que agora já entrava a 120 à hora no denso nevoeiro, não deve haver lugar mais nervoso que o banco de trás.

Quando chegámos a Asilah, o ferry estava a 45 quilómetros e a 40 minutos. O nevoeiro ia já ficando para trás e, com a visibilidade, entrou o optimismo. Devia dar. Se nada mais corresse mal, ainda hoje cruzávamos o Estreito de Gibraltar. Foi então que, já com a cabina da portagem à vista, eles apareceram: era a Polícia.

Enquanto parava, pensei: “Excesso de velocidade. Apanharam-me em excesso de velocidade.” Eram jovens, o que num polícia de trânsito pode ser um excelente ou um terrível sinal. Tanto podiam ser compreensivos e despedir-nos com um ralhete como reter-nos ali enquanto passavam vagarosa e zelosamente a sagrada multa. Mas, não. Não eram um nem outro. Aliás, nem sequer eram dois escroques a querer fazer render o turno da noite.

Eram simplesmente dois sujeitos cruéis, vindos da lodacenta boca de esgoto da condição humana. Dois nojentos que optaram por nos deixar à conversa durante um quarto de hora, sem avançarem com uma acusação nem pedirem quaisquer documentos. Duas pústulas infectadas que, à vista do meu desânimo e no minuto em que a âncora devia estar a subir, deram-nos ordem de seguida. Afinal, concluíram com a candura possível em dejectos daquela espécie, “só ainda não seguiram caminho porque não quiseram.”

Na alvorada seguinte, após uma noite num qualquer hotel de estrada e algures no Km 2.740 da viagem, entrámos no maldito ferry com a disposição de uma ferrujenta máquina a vapor. A “Mão de Fatima”, essa, anda ainda lá por casa, para aí no fundo de uma gaveta.

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