terça-feira, maio 23, 2006

Em morte lenta (Moremi, 2003.04.26)

Reforçados de mantimentos e expectativas, entrámos em Moremi. Chegavam os grandes parques e as caminhadas pelo mato ficavam carimbadas como proibidas. Agora, só mesmo empoleirados no camião Mercedes. Era tempo de game drive.

Pelos trilhos de terra batida, íamos cruzando vagarosamente as vidas das impalas, zebras e girafas que apenas tínhamos espreitado fugazmente nos game walks. Mesmo devagar, um quarto de hora bastava-nos para termos mais encontros que em três horas a pé pela savana. Imersos naquela babel, a confissão de Gys deixou-nos por isso intrigados: “I never saw a killing”.

Uma hora no sofá com as corridas e os rugidos do National Geographic eram o suficiente para uma única chita abater quatro impalas. No entanto, em quase vinte anos de Krugers, Serengetis e Okavangos, o nosso guia nunca assistira à corrida, ao salto e ao epílogo de uma perseguição bem sucedida. Era na selva que ele fazia a vida, mas a morte só a vira passar na TV. Talvez fossem as manias do destino.

Então, ele apontou para o longe: “Some- thing is happe- ning there”. No chão, uma enorme mancha preta balouçava sem que percebêssemos porquê. Era como se um estranho vento estivesse a impor a sua força sobre um corpo inerte. Uma dezena de metros à frente, já Gys descodificava a cena: “Four lions. They killed a buffalo”.

No meio da erva seca, o tom alperce das suas peles era a camuflagem perfeita. Dois dos leões vigiavam os oportunistas que se tinham juntado (algumas hienas e uma multidão de abutres) e outros dois alimentavam-se das entranhas do búfalo, manipulando a carcaça de meia tonelada sem esforço aparente. Debruçados no Mercedes, perdemo-nos no tempo. O sol começava a descer no horizonte e, mais uma vez, Gys tinha chegado no meio de uma refeição.

Regressá- mos pela manhã para encontrar quase tudo na mesma. Só mesmo o búfalo estava a caminho de ser uma massa disforme, onde apenas as ossadas mantinham a forma do que ele já tinha sido. Um leão espreguiçava-se rolando sobre o dorso, outro bocejava sonoramente. Os outros dois não tinham perdido o apetite, para teste da paciência dos abutres. Dessa vez, ficámos menos tempo. Mas voltaríamos ao fim da tarde, para deparar com a mais extraordinária cena de toda a viagem.

Nessa altura, os quatro leões mantin- ham-se por ali, rasgando os últimos músculos da sua presa. Os abutres tinham duplicado em número e já partilhavam os ramos de uma árvore morta com alguns marabus. Estranhamente, não se viam hienas, mas entretanto tinham aparecido dois crocodilos. Sentia-se no ar que a refeição dos leões não demoraria muito mais. Em breve, os necrófagos sentar-se-iam à mesa.

O Mercedes estava resguardado num bosque, parado à saída de uma curva da estrada de areia. E com o interesse a esbater-se, preparámo-nos para partir. Até que nos apercebemos de um súbito restolhar: eram os crocodilos a voltarem à água. E, junto a eles, um viajante solitário desmontava do capot do seu Defender e, atirando-se para trás do volante, gesticulou na nossa direcção apontando depois para o outro lado da curva. Nada conseguíamos ver, pois o arvoredo tapava a saída da curva. Mas, obviamente, algo se estava a passar.

Foi então que fomos autentica- mente colhidos por uma temível locomotiva de múscu- los e convicção. A cinco metros de nós, numa passada marcial, eles iam surgindo. Um… dois… três… quatro… sete… onze leões seguiam o trilho de areia que fazia as vezes de estrada e dirigiam-se para a peça de carne. Não tenho memória de mais colossal demonstração de força. Gys, que por ali já devia ter visto quase de tudo, esbugalhava os olhos: “The other lions are escaping. Never saw it. Never in my life…”. Enquanto os abutres esvoaçavam para todos os lados, os novos proprietários da carcaça mediam forças, rugindo e ameaçando-se entre si. O que restava do búfalo era escasso para tanta vontade. Rapidamente o submergiram, rasgando com os dentes os magros despojos de um dia de banquete.

Ao longe, os quatro leões fugitivos assistiam impassíveis. Junto a nós, Gys estava em estado de êxtase. Não fora para hoje a morte ao vivo. Mas o espectáculo da morte pode ser uma longa transmissão em diferido.

Etiquetas: , , ,