quarta-feira, maio 10, 2006

Entre a morte e a vida (Okavango, 2003.04.23)

- Queres ouvir?, perguntei.
- Sim, virou-se na cama.
- É sobre a viagem. Estás com muito sono?, insisti.
- Não, continuou monossilabicamente.
- Olha o que eles dizem: “A montagem dos acampamentos, assim como a carga e descarga dos veículos será realizada pelos membros do grupo”. Ouviste?
- Sim, arrastou a resposta.
- Tem mais: “Existem riscos e perigos que não estão incluídos numa viagem tradicional: esforço físico para o qual poderá não estar preparado; falta de apoio médico convencional devido a estar em regiões remotas; dificuldade de evacuação em caso de acidente”, disse, olhando de soslaio para lhe perceber a reacção. Ainda queres ir?
- Sim. Ainda quero ir, soprou meia a dormir. Mas tu dormes ou não?
- Ah, e olha aqui mais abaixo: “não espere encontrar o conforto e as condições de higiene a que está habituado; a alimentação está muitas vezes enquadrada com os hábitos e costumes locais, sendo impossível comer outra coisa…
- Zé, interrompeu, por favor, temos os dois que acordar cedo. Já percebi que vamos trabalhar, comer mal e lavar-nos de vez em quando. Mas amanhã falamos disso, ‘tá bem? Agora, por favor, acentuando estas palavras, apaga a luz.

Deitei-me. A Fátima não parecia muito preocupada com o desfile de dificuldades. Melhor ainda. Aconcheguei a almofada e pus-nos a pensar na savana africana. Tinha passado um par de minutos quando, do meio do quarto escuro, ela atirou a última pergunta da noite: Há por lá cobras?

Tentando mostrar convicção, respondi logo de seguida: Sobre cobras, nunca li nada. Felizmente, as luzes já estavam apagadas.

Um mês e 17 dias depois, fomos desper- tados às 5 da manhã. Tinha sido a primeira noite numa tenda em plena selva. Não fora fácil adormecer, pois os elefantes faziam-se ouvir do outro lado do rio. E lembro-me de duas vezes em que, no escuro, me ajoelhara no saco-cama para ver se as hienas andavam junto à fogueira. Eu próprio guardara os restos do jantar no atrelado do camião para evitar que elas rondassem a clareira. Mas era tão grande a excitação que o sono não conseguia impor-se de vez. Quando finalmente adormeci, uma voz chamou-me para o dia que começava a nascer. Íamos fazer o nosso primeiro game walk.

Um game walk é uma caminhada pelo mato sem rumo aparente e com o único objectivo de ver animais selvagens. Duas vezes por dia era hora de game walk: quando nascia o sol e quando ele se punha. Eram os momentos em que a maior parte dos animais saía para comer.

Na primeira manhã, andámos meia-hora sem dar com um sinal de vida. Até que, ao curvarmos um bosque de arbustos, vimos a morte à nossa frente. Era a carcaça de um elefante. “An old bull”, disse o nosso guia, após conferir com o pisteiro. “It died a week ago”.

O Gys, de nome Gysbert e pronúncia Raïss, tinha apenas 23 anos. No entanto, chegara à selva aos cinco. Sabia por isso a sua linguagem. Vira numa pilha de ossos a idade do elefante (pois as presas já estavam gastas), apercebera-se do seu sexo (pela envergadura das ossadas) e sabia-lhe a data da morte (pela decomposição da pele ali ao lado). Há seis anos que levava expedições de ignorância por entre os perigos da savana. E, há talvez seis anos, respondia “Ach, it is a safari myth…” quando perguntavam por cemitérios de elefantes. Mas, sobretudo, ensinava o respeito e a consciência como lições de sobrevivência na selva.

Nós seguíamos-lhe cada pegada como se disso dependesse a nossa vida. Por isso, estacámos bruscamente quando o vimos parar, dobrar-se ligeiramente e abrir o braço direito. Algo andava por ali. Entre o receio e a curiosidade, lembro-me de procurar com os olhos de um lado para o outro. Então, a resposta apareceu, camuflada no capim a 3 ou 4 metros de nós. Era uma pitão.

Três metros de pele luzidia e potência muscular. Enfim, o abraço mortal que todos temiam. Por cima do meu ombro, a Fátima arregalava os olhos. Afinal, ali havia cobras. Nunca me tinha parecido importante dizer-lhe que o Delta do Okavango tinha mais de 70 espécies de serpentes. E, sobretudo, que algumas delas se contavam entre as mais venenosas do mundo. Mas, logo ao primeiro game walk, ali estavam elas.

“Just give her room to go”, ouviu-se, enquanto nós contemplávamos em quase hipnose os seus profundos olhos negros e a língua bifendida que entrava e saía da boca. Progressivamente, a admiração pelo esplêndido animal ia substituindo o medo. Até que ela decidiu regressar ao seu tufo de erva seca. E, com o movimento de um chicote, ondulou vigorosamente das nossas vidas para fora.

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

«Não li nada sobre cobras»! - Hás-de singrar nalgum partido, acredita. Cumpts. :)

13 maio, 2006 12:39  

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