terça-feira, maio 09, 2006

Mordido (Rio Okavango, 2003.04.22)

Logo na primeira noite em África, vi um Rabo de Crocodilo. Custava 59 rands sul-africanos e estava na folha plastificada de um menu, acompanhado de arroz, alface, cebolas e fruta-da-pimenta. “No. It is not good”, tinha aconselhado o empregado.

À quarta noite, o repetido uivar de um chacal amedrontara o nosso sono ao relento em Makgadikgadi. E ao quinto dia, ainda consegui espreitar os estorninhos-de-Burchell e os rolieiros-de-peito-lilás (não há erro no nome) entre os ramos das árvores junto ao Boteti. Mas os animais de documentário, esses ainda não andavam por ali.

Até que, ao sexto dia, abastecemos de víveres frescos e entrámos no Delta do Okavango. Chegara finalmente o território dos grandes e, com ele, a temporada dos banhos bissemanais. Estávamos no Mato.

O Okavango nasce em Angola e capricha em nunca se encontrar com o mar. Aproveita antes a época das cheias para se espreguiçar numa área de 16.000 quilómetros quadrados. Só que, por enquanto, era ainda tempo para os pântanos e os canais serem sulcados pelo mokoro, uma embarcação baixa e de um só corpo talhada de um tronco de árvore.

À nossa espera estavam três mokoros e três indígenas com varas. África também tem gôndolas, mas aqui ninguém canta pelo caminho. Ao contrário, o nosso poler nunca abriu o rosto e só falou quando lhe perguntei sobre a cicatriz desenhada no ombro. “HIV/AIDS”, atirou com secura.

Não fiquei admirado. Afinal, o Botswana tinha mais de um terço da população infectada. Fiquei só a pensar na dura justiça de um povo que estigmatiza com uma lâmina aqueles que carregam a peste. Logo nessa noite, também as minhas convicções seriam postas à prova. Ele não era só poler ou pisteiro. Era também o nosso cozinheiro. Nesses momentos, todo o grupo já sabia porque é que aquele rosto nunca sorria. Mas ele já tinha sido suficientemente marcado. Por isso, nunca ninguém se desviou de um prato. Ou poupou um sorriso.

Entretanto, com o Okavango a baixar até ao palmo de altura, tivemos que seguir a vau. Com 5 ou 6 metros a separar as margens, pensámos em crocodilos e hipopótamos. Mas eram os babuínos quem andavam por ali. Eram dezenas e levantavam os traseiros escarlates evitando a terra que ainda fumegava de incêndio recente. Então a água voltou a subir e voltámos aos mokoros.

Mas, agora, eram as margens que vinham ao meu encontro. As folhas de papiro começavam a tocar-me nos braços, deixando cair ocasionalmente uma ou outra formiga que ali tinha feito corredor. Quando se segue no barco da frente, têm-se habitualmente o melhor ângulo de visão. Mas, neste momento, o meu tronco já ajudava a proa do mokoro a abrir caminho entre a folhagem cada vez mais junta.

Por fim, já mal se conseguia distinguir a distância entre as margens. Tive que juntar a cabeça aos joelhos para que o papiro não me cortasse o rosto. Mas eu era agora o apeadeiro ocasional para todo o tipo de insectos rastejantes. Aranhiços, pequenas centopeias e formigas vermelhas subiam-me pelos braços e passavam-me para dentro da t-shirt. Atrás de mim, a Fátima (também ela a ser açoitada pelas folhas) afastava os aranhiços que me desciam para dentro dos calções, enquanto eu esbracejava, tentando matar tudo o que me ia mordendo. No fundo do mokoro, iam caíndo formigas decepadas. As suas cabeças, mesmo sem o resto do corpo, continuavam presas à pele dos meus braços, como se fossem buscar uma última energia na morte. Eram só cabeça, mas eu ainda sentia as suas mandíbulas como se fossem alfinetes.

Após alguns minutos a ser mordido, o rio abriu numa pequena lagoa. Num impulso, atirei-me à água e esfreguei o formigueiro do meu corpo. Só viria a pensar que há crocodilos no Okavango uma hora depois, quando um balde pendurado no ramo de uma árvore se entornou sobre mim e levou os últimos cadáveres daquele famigerado exército vermelho.

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Já li! Cumpts.

10 maio, 2006 11:38  

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