quinta-feira, maio 18, 2006

O evitável cozinheiro (Maun, 2003.04.25)

Nunca saberei se por graça da providência, Ralph nunca cozinhou para nós.

Ele até era cozinheiro de profissão, tinha uns bem fornecidos cem quilos e um ar bonacheirão quando se ria com as suas próprias piadas. Ou seja, reunia os requisitos. Mas o facto de cozinhar para a tripulação maioritariamente filipina de um navio mercante não me inundava de confiança.

Ele estava ali como eu, em viagem. Por isso, até nem seria suposto que cozinhasse. Contudo, desde os primeiros dias que me arrepiava a ideia de poder vir a comer as suas receitas. É que, não encontro outra forma de o dizer, os intestinos do Ralph gaseavam-nos a cada dez minutos numa expulsão borbulhante. Quando andávamos pelo mato, era sempre mais provável que o cheiro fétido tivesse origem humana que animal. O que, atendendo às espécies vizinhas, não deixava de ser uma proeza.


Dias mais tarde, mergulhei numa lagoa e descobri um mexilhão. Com uma interjeição gutural só possível num alemão da Baviera, Ralph revirou as órbitas e propôs entusiasticamente cozinhá-los em molho inglês com tâmaras espremidas. Enojados, os nativos teimavam que mexilhões não eram comida; eu antecipava o vómito ao ver a mistela. Pelo sim pelo não, defen- di-me: “I dived and dived again. That is the only mussel on the lake”.

Numa manhã em Maun, fomos acordados por terríveis imprecações. Ralph, que tinha dormido ao relento, olhava para cima e, agitando o braço direito como um cutelo, invocava um raio que incinerasse todos os pássaros: “Dam birds from hell”. Quando chegámos junto a ele, o saco-cama azul estava semi-coberto de uma poça que, à primeira vista, era vómito. Percebi depois que era caca. Esbranquiçada e a meio caminho para se solidificar. E, descendo do sobrolho esquerdo até ao lábio superior, uma repugnante estalactite de fezes adornava-lhe o rosto vermelho de cólera. Em cima, empoleirado num ramo, um rolieiro-de-peito-lilás parecia trinar divertido ante os gritos da ocasional sanita.

Nesse mesmo dia, um exército de macacos entrou-nos no camião e nas mochilas, levando apenas as maçãs do Ralph: “Dam monkeys from hell”. Decididamente, o delta voltava-se contra o cozinheiro alemão, que, atirando torrões de terra, gritava: “I will roast you with your apples”. Ficou-se no entanto pela ameaça. Aliás, já o tinha dito, nunca cozinhou para nós.

Entre o gasoduto intoxicante e o experimentalista pantagruélico, Ralph não deixava de ser um homem de bom coração. É certo que parecia abusar dos molhos (tanto na flatulência como no fogão), mas era um tipo jovial. Há três semanas recebi um retrato do casamento. Ao seu lado para a vida, estava uma filipina lá do barco. Na boca, um sorriso que eu reconhecia. Estaria a cagar-se?

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Á primeira parece um texto de porcaria, mas ficou impecável; telvez porque não tem cheiro. Cumpts.

18 maio, 2006 17:41  

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