quarta-feira, maio 03, 2006

Os chacais do Nada (Makgadikgadi, 2003.04.20)

"- Two years ago, this was a lake with hundreds of flamingoes", disse o guia.

Custava a crer. Aquilo era o Nada absoluto. Aquilo não podia estar vivo há meros dois anos.

Para onde quer que nos virássemos, o salar de Sowa fracassava em surpreender. Não havia um ressalto que fosse no horizonte e a alva monotonia só era interrompida aqui e ali por uns tufos de erva, amarelados de morte.

Podia ter sido um lago de flamingos, mas hoje já nada cruzava o céu. Nem uma única ave, nem um grito solitário. O ruído era um exclusivo nosso, ao chocarmos os ferros que montavam as tendas ou a arrastarmos os pés na quebradiça película de sal e feldspato.

E, contudo, tudo aquilo era magnífico.

Em Makgadikgadi, no salar de Sowa, descobre-se que o silêncio, quando nos rodeia na sua expressão mais profunda, ganha vida. E não deixa espaço para mais nada, senão a mais solene paz de espírito. Sentado no chão, enquanto o sol se punha em África, converti-me ao vazio completo. E percebi que há momentos em que o nada é o mais próximo que existe de sentir tudo.

Quando a noite caiu, surgiu a ideia: aquele era o sítio ideal para uma noite ao relento. "Just don’t let the fire go", advertiu Gys, o guia sul-africano. Para quem nada sabia daquelas terras, foi o suficiente para espalharmos os sacos-cama em redor da fogueira.

Só que o silêncio é algo que nunca existe na noite de África. E, vindo do nada, um uivo cortou a escuridão, gelando-nos de medo. "Put more wood on the fire", ouviu-se de cima do camião. Pus quase toda a lenha que por ali havia, mas pouco mais consegui que um novo uivo, mais longo e soluçado. "It’s only a jackal."

Apenas um chacal, dizia ele. Naquele momento pensei o quanto da nossa vida se pode pôr nas mãos de um desconhe- cido. Mas, também, aquilo era a vida dele, era o que ele fazia. Instintivamente, sosseguei. E o chacal uivou apenas mais uma vez. E mais distante, algures no meio do Nada.

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