quarta-feira, maio 24, 2006

Por Xakanaxa (Moremi, 2003.04.27)

Era hora de sesta no acampamento de Xakanaxa. Como de costume, só eu me mantinha acordado. Sempre achara um desperdício entregar duas horas ao sono, quando a selva fervilhava em meu redor. Ainda que o guia tivesse dado instruções para não abandonarmos a clareira e até a insuspeita Lonely Planet confirmar o perigo: “Watch out for wildlife in Xakanaxa: one reader was chased by elephants in 1999 and an American boy was tragically killed by hyenas here in 2000”.

Assim, subi para a cabina do camião e deixei-me lá a ler um livro sobre os répteis do Okavango. Pus os pés no tablier e, enquanto a sombra enchia Xakanaxa, vi-me como o único convidado das melodias dos pássaros. Aliás, só sairia dali para visitar Douglas, o nosso WC.

Habitualmente, o Douglas ficava a uns cinquenta metros do acampamento, escondido atrás de uma árvore. Em Xakanaxa, estava um pouco mais longe, forçando-nos a uma caminhada por um bosque de acácias novas. Apenas alguns passos me separavam da árvore quando senti um movimento. Olhei para o meu lado direito e vi-o a fitar-me. Era um leopardo.

Ocorreu-me que devia parar. Então, fiquei a contem- plá-lo. Apenas. A menos de dez metros de mim, ele permanecia estático. Até que decidiu agir. E, curvando sobre si mesmo, fez meia-volta para o bosque. Não tinham passado mais que cinco segundos.

Mudo e estático, ali fiquei por mais um minuto, tentando perceber o que fazer a seguir. Passou-me pela cabeça que os leopardos costumam subir às árvores. Olhei para cima. Por outro lado, ele podia estar a rodear-me. Olhei para baixo e pus-me a tentar ouvir se abria caminho junto às folhagens dos arbustos. Então, sem nada ver nem ouvir, comecei vagarosamente a andar de lado, até chegar ao acampamento ainda adormecido. Entrei de novo no camião e voltei a pegar no livro. A cada parágrafo, olhava pelo retrovisor para o canto da clareira. Mas, estranhamente, nunca foi medo o que senti. Tudo tinha sido demasiadamente rápido e paralisante para poder sentir qualquer coisa.

Sentir o medo terrível, o pânico descontrolado, tinha sido na noite anterior. Era a primeira noite no famigerado Xakanaxa e a fogueira ia perdendo fulgor. Já pouco se falava e os olhares fixavam-se hipnoticamente nas chamas, antecipando a entrada nas tendas. Então, vindo da escuridão, tão alto como um comboio a aliviar vapor, aquele ruído cruzou os ares. Não era um grito nem um rugido, era mais como um gigante a fungar junto às nossas cabeças. Os gritos vieram depois: eram as raparigas do grupo, transidas de medo. Eu não gritei. Saltei da cadeira de lona, quis fugir para longe e acabei no abraço apavorado da Fátima e da brasileira Sybille. Já o medo foi o mais fisicamente intenso que alguma vez sentira. Mesmo não passando de um dos menos interessantes capítulos da história de Xakanaxa.

Gys, o guia, dormia todas as noites em cima do atrelado do Mercedes. Pela manhã, interpelei-o enquanto ele fazia o pequeno-almoço. “Yes, I heard”, respondeu ao dobrar-se para apanhar uma lata de cacau instantâneo, “it was an impala. They do those noises when they are afraid of something”. Fiz um sorriso amarelo e desviei-me. Afinal, o terror de Xakanaxa não era senão o mais assustadiço dos mamíferos da selva.

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Mais assustadiço, mas não o mais assutado. Cumpts.

26 maio, 2006 22:20  
Blogger José Costa Alves said...

Touché. Aliás, manter os fundilhos secos já foi proeza. Abraço.

27 maio, 2006 12:45  

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