terça-feira, março 07, 2006

Nasser, o ignóbil (Aswan, 2002.12.31)

Assim que nos viu no cais, armou a vénia. Dobrado pela cintura, abriu os dois braços num gesto que restara dos tempos coloniais. Mas agora já não era subserviência. Era negócio. Então, quando chegámos perto, ergueu-se e sibilou num esgar de dois dentes: “Pour le souq, messieurs?”

Nasser, condutor de caleches, tinha daquelas faces em que instintivamente não se confia. Conseguia sorrir com facilidade e gastar só um segundo para carregar o cenho. Mas o longínquo souq de Aswan era o nosso destino.

Era um mercado de caos e poeira, como em qualquer cidade do deserto. Ali, as bancas de tecidos, frutos e especiarias eram serventia para a maioria árabe e para os últimos núbios. Só nós violentávamos a genuinidade, com a nossa palidez deslocada e os nossos olhares circunspectos.

Sabe bem não ter ocidentais à vista. Porque são sítios como estes que me entregam à ilusão do viajante. Às vezes, até do explorador. E aí, até desdenho dos aforismos (“o viajante vê o que vê e o turista vê o que veio ver”, GK Chesterton) de que não discordo. Porque o crédito está nas minhas botas empoeiradas e nos sons que só os meus ouvidos não compreendem.

Foi um acidente o reencontro com a rua principal. Nasser já nos tinha visto e preocupava-se agora em empurrar quem já nos oferecia os seus serviços. O modo como dizia os erres era seco e desagradável enquanto agitava os braços até nós. Quase tão desagradável como a sua sinistra suavidade. Então, desconfiado como nunca, procurei confirmação para o preço: “Nasser, deux euros?”

Bruscamente, atirou uns olhos faíscantes para trás. Que não tinha sido esse o acordo com o pobre Nasser e que um acordo não devia ser traído. “Dix, dix” repetia, abanando a cabeça. Falando da garganta, acusei-o de querer enganar-nos. Sobrepus a voz à dele e ameacei sair da caleche. Então, pondo os olhos no chão e erguendo o dedo ao céu, jurou: “Pour le Dieu”. E repetiu: “Le Dieu, le Dieu”.

Aquilo pareceu-me solene. Um bom muçulmano não invoca impunemente o nome do Terrível, pensei. Naquela terra de nenhures, perdi a segurança para lhe contestar a devoção. E fechei com um vencido "Nasser, you are not a good man".

Até que o sorriso do condutor regressou. “Hasheesh? Hasheesh?” Era uma oferta. Não ia ter que pagar. Percebi então que já tinha pago o suficiente. Afinal, era um turista em Aswan.

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