terça-feira, março 07, 2006

Um reveillon egípcio (MS Voyager, 2002.12.31)

As doze passas dispensam-se. O bolo rei só se suporta sem as frutas cristalizadas. E o champanhe são dois golos numa bebida de um só dia.

Mas já me faz falta a contagem decrescente. Porque é assim que se fica a saber.

Ao menos que um egípcio desse as horas em árabe. E que deixassem guardada a mais feia de todas as dançarinas do ventre.

Ao menos isso.

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Nasser, o ignóbil (Aswan, 2002.12.31)

Assim que nos viu no cais, armou a vénia. Dobrado pela cintura, abriu os dois braços num gesto que restara dos tempos coloniais. Mas agora já não era subserviência. Era negócio. Então, quando chegámos perto, ergueu-se e sibilou num esgar de dois dentes: “Pour le souq, messieurs?”

Nasser, condutor de caleches, tinha daquelas faces em que instintivamente não se confia. Conseguia sorrir com facilidade e gastar só um segundo para carregar o cenho. Mas o longínquo souq de Aswan era o nosso destino.

Era um mercado de caos e poeira, como em qualquer cidade do deserto. Ali, as bancas de tecidos, frutos e especiarias eram serventia para a maioria árabe e para os últimos núbios. Só nós violentávamos a genuinidade, com a nossa palidez deslocada e os nossos olhares circunspectos.

Sabe bem não ter ocidentais à vista. Porque são sítios como estes que me entregam à ilusão do viajante. Às vezes, até do explorador. E aí, até desdenho dos aforismos (“o viajante vê o que vê e o turista vê o que veio ver”, GK Chesterton) de que não discordo. Porque o crédito está nas minhas botas empoeiradas e nos sons que só os meus ouvidos não compreendem.

Foi um acidente o reencontro com a rua principal. Nasser já nos tinha visto e preocupava-se agora em empurrar quem já nos oferecia os seus serviços. O modo como dizia os erres era seco e desagradável enquanto agitava os braços até nós. Quase tão desagradável como a sua sinistra suavidade. Então, desconfiado como nunca, procurei confirmação para o preço: “Nasser, deux euros?”

Bruscamente, atirou uns olhos faíscantes para trás. Que não tinha sido esse o acordo com o pobre Nasser e que um acordo não devia ser traído. “Dix, dix” repetia, abanando a cabeça. Falando da garganta, acusei-o de querer enganar-nos. Sobrepus a voz à dele e ameacei sair da caleche. Então, pondo os olhos no chão e erguendo o dedo ao céu, jurou: “Pour le Dieu”. E repetiu: “Le Dieu, le Dieu”.

Aquilo pareceu-me solene. Um bom muçulmano não invoca impunemente o nome do Terrível, pensei. Naquela terra de nenhures, perdi a segurança para lhe contestar a devoção. E fechei com um vencido "Nasser, you are not a good man".

Até que o sorriso do condutor regressou. “Hasheesh? Hasheesh?” Era uma oferta. Não ia ter que pagar. Percebi então que já tinha pago o suficiente. Afinal, era um turista em Aswan.

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sábado, março 04, 2006

2002.12.29, Pelo Nilo

Sempre desconfiei de cruzeiros. Tinha a ideia de que me iria cruzar com gente com quem nunca escolheria estar. E, pior, de quem não conseguiria escapar.

Hoje, por experiência, falo. Num cruzeiro, pode-se ter que jantar com uma professora primária em missão de ódio (“isto são gourgettes, não é? Põem gourgettes em tudo!”), pode-se ter que fumar sem-filtros egípcios (“only wone we ave, zir”) e até ser-se olhado de lado porque todos os outros se disfarçaram de xeques ou odaliscas.

Hoje, por experiência, digo. Fazer um cruzeiro é um exercício de fé. É aceitar com um sorriso uma venda nos olhos. E esperar que o cozinheiro não tenha comprado gourgettes a mais.

Hoje, por experiência, concluo. Levem-se amigos. Cinco ou seis. E depois siga-se para o Nilo e reservem-se os fins de tarde para ver os montes a corar atrás das palmeiras.

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