sexta-feira, maio 26, 2006

Kkkkkrruk-uuu-u-u (Moremi, 2003.04.27)

Tivesse eu que nomear uma coisa - uma só - que me recordasse com prazer dos dias no mato e ela seria o mais improvável dos meus prognósticos iniciais.

Elas também cantam por cá, mas é lá que a voz rouca das rolas mais enche as tardes. Cada uma com o seu canto, todas elas a maior das saudades de África.

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Seguindo Thesiger

Nestes dias em que o petróleo dita os modos de viajar e os destinos são um grande pacote litoral, traz conforto visitar os tempos dos Indomáveis.

O último dos grandes exploradores britânicos, Sir Wilfred Thesiger (1910-2003) nunca abandonou o desdém pelas modernas perversi- dades, sempre trilhando num pedregoso calcorrear de caminhos de fome e cansaço, frio e morte.

Ontem, terminei na página 350 uma jornada de seis anos em que ele partilhou com os beduínos os areais do Sul da Arábia. Ocorreu-me que já ninguém viaja assim e que os próprios beduínos já vencem as dificuldades do deserto em jipes com ar condicionado. Hoje, procuram-se resorts com tudo incluído e acesso protegido, não vão os nativos decidir entrar com olhares desafiantes e túnicas transpiradas. Hoje só resta a exausta sombra do explorador, dobrado que foi a um mundo que não pediu.

Mas porque, neste canto, nunca dos anseios se desistirá como vãos, passo a transcrever com respeitosa vénia:

“De manhã observei Mabkhaut a soltar os camelos para o pasto e, à medida que estes se libertavam, momentaneamente poupados do duro trabalho a que os submetíamos, apercebi-me de que só conseguia pensar neles como comida. Alegrei-me quando desapareceram de vista. Al Auf aproximou-se e deitou-se a meu lado, cobrindo-se com a sua capa. Penso que não falámos. Eu estava deitado com os olhos fechados, insistindo para comigo: «Se estivesse em Londres, daria tudo para estar aqui». (…) Preferia estar aqui, faminto como estava, do que sentar-me numa cadeira, empanturrado de comida, a ouvir rádio. (…) Mantive-me desesperadamente fiel a esta convicção. Parecia-me infinitamente importante. Pô-la minimamente em causa seria admitir a derrota, renegar tudo aquilo em que acreditava.”

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quarta-feira, maio 24, 2006

Por Xakanaxa (Moremi, 2003.04.27)

Era hora de sesta no acampamento de Xakanaxa. Como de costume, só eu me mantinha acordado. Sempre achara um desperdício entregar duas horas ao sono, quando a selva fervilhava em meu redor. Ainda que o guia tivesse dado instruções para não abandonarmos a clareira e até a insuspeita Lonely Planet confirmar o perigo: “Watch out for wildlife in Xakanaxa: one reader was chased by elephants in 1999 and an American boy was tragically killed by hyenas here in 2000”.

Assim, subi para a cabina do camião e deixei-me lá a ler um livro sobre os répteis do Okavango. Pus os pés no tablier e, enquanto a sombra enchia Xakanaxa, vi-me como o único convidado das melodias dos pássaros. Aliás, só sairia dali para visitar Douglas, o nosso WC.

Habitualmente, o Douglas ficava a uns cinquenta metros do acampamento, escondido atrás de uma árvore. Em Xakanaxa, estava um pouco mais longe, forçando-nos a uma caminhada por um bosque de acácias novas. Apenas alguns passos me separavam da árvore quando senti um movimento. Olhei para o meu lado direito e vi-o a fitar-me. Era um leopardo.

Ocorreu-me que devia parar. Então, fiquei a contem- plá-lo. Apenas. A menos de dez metros de mim, ele permanecia estático. Até que decidiu agir. E, curvando sobre si mesmo, fez meia-volta para o bosque. Não tinham passado mais que cinco segundos.

Mudo e estático, ali fiquei por mais um minuto, tentando perceber o que fazer a seguir. Passou-me pela cabeça que os leopardos costumam subir às árvores. Olhei para cima. Por outro lado, ele podia estar a rodear-me. Olhei para baixo e pus-me a tentar ouvir se abria caminho junto às folhagens dos arbustos. Então, sem nada ver nem ouvir, comecei vagarosamente a andar de lado, até chegar ao acampamento ainda adormecido. Entrei de novo no camião e voltei a pegar no livro. A cada parágrafo, olhava pelo retrovisor para o canto da clareira. Mas, estranhamente, nunca foi medo o que senti. Tudo tinha sido demasiadamente rápido e paralisante para poder sentir qualquer coisa.

Sentir o medo terrível, o pânico descontrolado, tinha sido na noite anterior. Era a primeira noite no famigerado Xakanaxa e a fogueira ia perdendo fulgor. Já pouco se falava e os olhares fixavam-se hipnoticamente nas chamas, antecipando a entrada nas tendas. Então, vindo da escuridão, tão alto como um comboio a aliviar vapor, aquele ruído cruzou os ares. Não era um grito nem um rugido, era mais como um gigante a fungar junto às nossas cabeças. Os gritos vieram depois: eram as raparigas do grupo, transidas de medo. Eu não gritei. Saltei da cadeira de lona, quis fugir para longe e acabei no abraço apavorado da Fátima e da brasileira Sybille. Já o medo foi o mais fisicamente intenso que alguma vez sentira. Mesmo não passando de um dos menos interessantes capítulos da história de Xakanaxa.

Gys, o guia, dormia todas as noites em cima do atrelado do Mercedes. Pela manhã, interpelei-o enquanto ele fazia o pequeno-almoço. “Yes, I heard”, respondeu ao dobrar-se para apanhar uma lata de cacau instantâneo, “it was an impala. They do those noises when they are afraid of something”. Fiz um sorriso amarelo e desviei-me. Afinal, o terror de Xakanaxa não era senão o mais assustadiço dos mamíferos da selva.

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terça-feira, maio 23, 2006

Em morte lenta (Moremi, 2003.04.26)

Reforçados de mantimentos e expectativas, entrámos em Moremi. Chegavam os grandes parques e as caminhadas pelo mato ficavam carimbadas como proibidas. Agora, só mesmo empoleirados no camião Mercedes. Era tempo de game drive.

Pelos trilhos de terra batida, íamos cruzando vagarosamente as vidas das impalas, zebras e girafas que apenas tínhamos espreitado fugazmente nos game walks. Mesmo devagar, um quarto de hora bastava-nos para termos mais encontros que em três horas a pé pela savana. Imersos naquela babel, a confissão de Gys deixou-nos por isso intrigados: “I never saw a killing”.

Uma hora no sofá com as corridas e os rugidos do National Geographic eram o suficiente para uma única chita abater quatro impalas. No entanto, em quase vinte anos de Krugers, Serengetis e Okavangos, o nosso guia nunca assistira à corrida, ao salto e ao epílogo de uma perseguição bem sucedida. Era na selva que ele fazia a vida, mas a morte só a vira passar na TV. Talvez fossem as manias do destino.

Então, ele apontou para o longe: “Some- thing is happe- ning there”. No chão, uma enorme mancha preta balouçava sem que percebêssemos porquê. Era como se um estranho vento estivesse a impor a sua força sobre um corpo inerte. Uma dezena de metros à frente, já Gys descodificava a cena: “Four lions. They killed a buffalo”.

No meio da erva seca, o tom alperce das suas peles era a camuflagem perfeita. Dois dos leões vigiavam os oportunistas que se tinham juntado (algumas hienas e uma multidão de abutres) e outros dois alimentavam-se das entranhas do búfalo, manipulando a carcaça de meia tonelada sem esforço aparente. Debruçados no Mercedes, perdemo-nos no tempo. O sol começava a descer no horizonte e, mais uma vez, Gys tinha chegado no meio de uma refeição.

Regressá- mos pela manhã para encontrar quase tudo na mesma. Só mesmo o búfalo estava a caminho de ser uma massa disforme, onde apenas as ossadas mantinham a forma do que ele já tinha sido. Um leão espreguiçava-se rolando sobre o dorso, outro bocejava sonoramente. Os outros dois não tinham perdido o apetite, para teste da paciência dos abutres. Dessa vez, ficámos menos tempo. Mas voltaríamos ao fim da tarde, para deparar com a mais extraordinária cena de toda a viagem.

Nessa altura, os quatro leões mantin- ham-se por ali, rasgando os últimos músculos da sua presa. Os abutres tinham duplicado em número e já partilhavam os ramos de uma árvore morta com alguns marabus. Estranhamente, não se viam hienas, mas entretanto tinham aparecido dois crocodilos. Sentia-se no ar que a refeição dos leões não demoraria muito mais. Em breve, os necrófagos sentar-se-iam à mesa.

O Mercedes estava resguardado num bosque, parado à saída de uma curva da estrada de areia. E com o interesse a esbater-se, preparámo-nos para partir. Até que nos apercebemos de um súbito restolhar: eram os crocodilos a voltarem à água. E, junto a eles, um viajante solitário desmontava do capot do seu Defender e, atirando-se para trás do volante, gesticulou na nossa direcção apontando depois para o outro lado da curva. Nada conseguíamos ver, pois o arvoredo tapava a saída da curva. Mas, obviamente, algo se estava a passar.

Foi então que fomos autentica- mente colhidos por uma temível locomotiva de múscu- los e convicção. A cinco metros de nós, numa passada marcial, eles iam surgindo. Um… dois… três… quatro… sete… onze leões seguiam o trilho de areia que fazia as vezes de estrada e dirigiam-se para a peça de carne. Não tenho memória de mais colossal demonstração de força. Gys, que por ali já devia ter visto quase de tudo, esbugalhava os olhos: “The other lions are escaping. Never saw it. Never in my life…”. Enquanto os abutres esvoaçavam para todos os lados, os novos proprietários da carcaça mediam forças, rugindo e ameaçando-se entre si. O que restava do búfalo era escasso para tanta vontade. Rapidamente o submergiram, rasgando com os dentes os magros despojos de um dia de banquete.

Ao longe, os quatro leões fugitivos assistiam impassíveis. Junto a nós, Gys estava em estado de êxtase. Não fora para hoje a morte ao vivo. Mas o espectáculo da morte pode ser uma longa transmissão em diferido.

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sexta-feira, maio 19, 2006

Geografia Vitoriana

Eram 4 da tarde de um Domin- go de 1965. Uns poucos tinham ido de carro e a maior parte na excur- são, mas estavam quase todos para Tomar. E quando o Vitória jogava fora, o bairro ficava entregue aos velhos e a algumas mulheres. Há que dizer que, depois dos jogos com o Tramagal e com o Torres Novas, já não havia hipótese de subir à Segunda do Nacional. Mas, mesmo assim, acompanhava-se o Clube. Aproveitava-se e conhecia-se a terra.

Treze anos depois, o entusiasmo estava ao rubro. A equipa subira à Terceira na época anterior, e, fosse qual fosse o campo, de Bucelas a Campo Maior, de Borba a Benavente, não faltava o grito: “Vamos embora, Vitória”. Fica para a história das desilusões que, nas últimas jornadas, o Elvas passou à frente e adiou o sonho da Segunda Divisão para outros anos. Mas, que remédio, ao menos ia-se passeando, comendo e rindo.

Na época seguinte, com 9 anos, já eu respondia de ponta de língua quando me perguntavam se era Benfica ou Sporting: “Sou do Vitória”. Lembro-me de ter visto um ou dois jogos, mas não sei com quem. Aliás, só muito mais tarde é que soube que tínhamos ficado outra vez em terceiro no campeonato. E que o Oriental e o Estrela da Amadora é que tinham subido à Segunda.

Aí, pese toda a esperança de um bairro de fibra (“Para o ano é que é”) e sem que ninguém o adivinhasse na altura, começou o lento declínio. Das camisolas vermelhas mais aguerridas de toda a Lisboa e da geração que tinha ido a Tomar em 65. E nunca mais o Vitória esteve perto de subir à Segunda.

Os campos passaram a ser mais pequenos, os balneários mais acanhados e no Distrital deixaram de fazer sentido as excursões. Mas foi então que, deserdado dos tempos áureos, comecei a seguir o VCL. E a alinhavar toda uma geografia que se materializava em campos de futebol. Domingo sim, domingo não, primeiro à boleia e mais tarde no meu Corolla de 72, também eu me juntei ao grito.

Na Charneca (que parecia uma praça de touros), no Operário (quase um derby), em Camarate (ao lado de um cemitério), nos Olivais (outro cemitério), na Musgueira (onde levei umas estaladas), no Damaiense (onde éramos sempre roubados), no Palmense (onde sempre perdi), no Porto Salvo (um metro da linha lateral à linha de grande área), no Domingos Sávio (onde as duas linhas quase coincidiam), em Agualva (os melhores couratos), em Santa Iria (porrada e invasão de campo), no Unidos do Bairro Padre Cruz (invasão de campo e porrada, acho), etcetera, etcetera… Enfim, poderia tranquilamente e de memória juntar-lhes mais vinte pelados. Ou trinta.

Hoje, os meus Domingos têm outros rumos. Fico menos vezes rouco e já não entro em casa de botas enlameadas. E, a esbracejar na I Divisão B do Distrital de Lisboa, o Vitória até está numa espécie de Segunda dos Mais Pequenos.

Mas, e porque há afectos que nos acompanham até ao fim, sou orgulhosa e incondicionalmente do Vitória. Há quem lhe chame, porque sempre assim lhe chamaram, Vitória da Picheleira.

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quinta-feira, maio 18, 2006

O evitável cozinheiro (Maun, 2003.04.25)

Nunca saberei se por graça da providência, Ralph nunca cozinhou para nós.

Ele até era cozinheiro de profissão, tinha uns bem fornecidos cem quilos e um ar bonacheirão quando se ria com as suas próprias piadas. Ou seja, reunia os requisitos. Mas o facto de cozinhar para a tripulação maioritariamente filipina de um navio mercante não me inundava de confiança.

Ele estava ali como eu, em viagem. Por isso, até nem seria suposto que cozinhasse. Contudo, desde os primeiros dias que me arrepiava a ideia de poder vir a comer as suas receitas. É que, não encontro outra forma de o dizer, os intestinos do Ralph gaseavam-nos a cada dez minutos numa expulsão borbulhante. Quando andávamos pelo mato, era sempre mais provável que o cheiro fétido tivesse origem humana que animal. O que, atendendo às espécies vizinhas, não deixava de ser uma proeza.


Dias mais tarde, mergulhei numa lagoa e descobri um mexilhão. Com uma interjeição gutural só possível num alemão da Baviera, Ralph revirou as órbitas e propôs entusiasticamente cozinhá-los em molho inglês com tâmaras espremidas. Enojados, os nativos teimavam que mexilhões não eram comida; eu antecipava o vómito ao ver a mistela. Pelo sim pelo não, defen- di-me: “I dived and dived again. That is the only mussel on the lake”.

Numa manhã em Maun, fomos acordados por terríveis imprecações. Ralph, que tinha dormido ao relento, olhava para cima e, agitando o braço direito como um cutelo, invocava um raio que incinerasse todos os pássaros: “Dam birds from hell”. Quando chegámos junto a ele, o saco-cama azul estava semi-coberto de uma poça que, à primeira vista, era vómito. Percebi depois que era caca. Esbranquiçada e a meio caminho para se solidificar. E, descendo do sobrolho esquerdo até ao lábio superior, uma repugnante estalactite de fezes adornava-lhe o rosto vermelho de cólera. Em cima, empoleirado num ramo, um rolieiro-de-peito-lilás parecia trinar divertido ante os gritos da ocasional sanita.

Nesse mesmo dia, um exército de macacos entrou-nos no camião e nas mochilas, levando apenas as maçãs do Ralph: “Dam monkeys from hell”. Decididamente, o delta voltava-se contra o cozinheiro alemão, que, atirando torrões de terra, gritava: “I will roast you with your apples”. Ficou-se no entanto pela ameaça. Aliás, já o tinha dito, nunca cozinhou para nós.

Entre o gasoduto intoxicante e o experimentalista pantagruélico, Ralph não deixava de ser um homem de bom coração. É certo que parecia abusar dos molhos (tanto na flatulência como no fogão), mas era um tipo jovial. Há três semanas recebi um retrato do casamento. Ao seu lado para a vida, estava uma filipina lá do barco. Na boca, um sorriso que eu reconhecia. Estaria a cagar-se?

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quarta-feira, maio 17, 2006

Sete (Okavango, 2003.04.25)

No Norte da Escócia, um velho pescador rematara respeitosamente o nome de Eusébio quando falei do meu país; Rui Costa, il principino, era repetido com lágrimas nos olhos quando em Florença descobriam a minha nacionalidade; e, até num souk de Aswan, o futebol escancarara um sorriso desdentado: “Manuel José da Silva, manager of Al Ahly, the Great”.

Mas já um rotundo “Luís Figo!”, o nosso número sete, era disparo certeiro por todo o globo. Como se fosse um apelido do nome próprio Portugal. Na realidade, de tão frequente, a contra-resposta tornava-se esperada.

A surpresa viria de uma remota aldeia de palhotas perdida nos fundos do Botswana. Era uma terra sem electricidade ou água potável, talvez até sem nome. Mas tinha por lá o Sete.

Talvez até nem sentissem a falta da luz. É que havia um Sete a brilhar e um outro Sete sempre disposto a ajudar.

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terça-feira, maio 16, 2006

Chegaram os Leões (Okavango, 2003.04.24)

Na noite anterior, as hienas tinham andado pelo bosque que circundava o nosso acampamento. Primeiro, os ruídos pareciam da lenha a estalar na fogueira, mas subitamente o Gys apontou a lanterna para trás. E, nas sombras, todos vimos aqueles vultos corcundas a escaparem-se para o meio das árvores. Foi então que alguém perguntou: “Are they dangerous?”

“It depends”, disse o guia, alimentando a fogueira de mais lenha. Durante o dia, eram animais solitários, inofensivos e mesmo cobardes. Mas, quando ficava escuro, juntavam-se para caçar. E, nessa altura, eram evitadas por todos os animais da selva. Até pelos leões.

Olhei de novo para o bosque à minha frente. Nada se via mexer naquela indistinguível massa negra, mas o medo adivinhava-lhes a presença. Então, o Gys continuou. Uma das mais sangrentas histórias do delta com homens envolvidos tivera as hienas como protagonistas. Uma matilha entrara a meio da noite num acampamento e fora descoberta por uma criança de 9 anos. Em pânico, a criança saiu da sua tenda e tentara alcançar a tenda dos seus pais. Mas, com isso, desrespeitou a condição número 1 de uma pessoa na selva: “Never run. If you run, they think you are a prey. If you run, you are food.” Não conseguiu dar mais que alguns passos. Foi abatida por uma matilha de hienas esfomeadas. Só na manhã seguinte é que foi encontrada pela família em desespero. Mas pouco mais restava que as suas ossadas.

De um momento para o outro, sentia-se que a fogueira não aquecia o suficiente. Sentado num enorme tronco de árvore que tinha tombado, eu só esperava que aquele formigueiro na barriga não fosse o fermentar de uma cólica. Ou que qualquer outra necessidade não me obrigasse a fazer 30 metros no breu da noite até ao semi-escondido Douglas, apenas na incipiente companhia de uma lanterna.

Felizmente, nada aconteceu. Aliás, enquanto caminhávamos no primeiro game walk do dia, o sinistro relato da noite anterior não era mais que uma memória esbatida. A manhã estava muito quente e o nosso andamento era esforçado. De tão opressivo, o calor até escondia os animais. Desde que saíramos do acampamento, tínhamos já deixado para trás duas horas de marcha solitária, onde pouco mais ouvíamos que a nossa própria respiração. Ofegante, quase sufocada.

Então, o nosso guia quebrou o silêncio e apontou para longe para a copa de uma árvore. “It’s a killing”, virou-se ele para nós, indicando-nos os ramos cobertos de abutres. Virámos o rumo e seguimos naquela direcção. Estávamos exaustos, mas a expectativa fazia-nos andar mais rápido. E, durante um quarto de hora, aproximámo-nos cada vez mais da árvore. Mas, quando lá chegámos, não havia sinal de vida. Os abutres já não estavam por ali e, estranhamente, nenhum outro animal mitigava a sede na pequena lagoa que existia junto ao arvoredo. Até que a justificação saiu da boca do Gys, enquanto olhava para o chão: “Lions.” Naquele momento, senti o nosso guia invadido de um entusiasmo que ainda não se tinha revelado. E, num tom quase juvenil, acrescentou: “Let’s follow them.”

À frente ia o Gys e o nosso pisteiro, nativo do delta; pelo meio, quatro urbanos em passo titubeante; atrás, com o coração a cavalgar, eu fechava o grupo. Tentando manter a frieza, ia olhando à vez para o lado e para trás, não fossem decidir-se aparecer nas minhas costas. Mas foi junto à cabeça do grupo que se ouviu. Era um rugido terrível. E tal e qual o Gys dissera uns dias antes, sentimo-lo troar no nosso peito antes de chegar aos nossos ouvidos.

Num ápice, o grupo desmembrou-se. Uns agarravam-se aos outros, alguém gritou de terror e houve até quem corresse dois ou três passos até se lembrar da lição (“Never run”). À cabeça do pelotão, o pisteiro, africano e reincidente, mantinha-se estático. O nosso guia virou-se para nós e levantou as palmas das mãos, aconselhando calma. Eu tinha ficado parado ao soar do rugido. Gelara. Então, o Gys advertiu: “Remember, they might want to scare you. So, if they run in your direction, stay still.” Entreolhámo-nos. “Even if they are only two metres from you, stay still.” E concluiu: “Stay still and you stay alive.” Aos poucos, chegámo-nos adiante. E vimos os leões, à sombra de uma acácia.

Deviam ser dez ou doze. Não vi nenhuma juba, mas a maior parte eram adultos. Leoas ou jovens leões. E também algumas crias. Estavam a vinte metros de nós, refastelados e defendendo-se do sol. Um deles bocejou. Uma cria, do tamanho do meu tronco, decidiu exibir-se e rugiu na nossa direcção. Então, tão subitamente como ouvíramos o primeiro dos rugidos, internaram-se no bosque. Deixámos de os ver. Mas não de os sentir.

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sexta-feira, maio 12, 2006

Para lá dos Urais

Tenho saudade. De gente, tempos, sítios, situações, de tudo. Aliás, para mim não há regra para a saudade. Basta que algo relembrável fique para trás para que um par de anos o transforme em saudade. Na realidade, a saudade é a minha forma de cristalizar o passado que faz sentido.

Uma pequena saudade que eu tenho é do tempo passado nos alfarrabistas do Chiado. Lembro-me particularmente das dedicatórias nas guardas (“do padrinho Júlio Alçada pelo teu 9º aniversário”). Dos títulos em itálico ou a imitar caligrafia. E do ar mofado nas prateleiras de topo.

Mas, sobretudo, recordo a emoção daquelas aventuras encadernadas a percalina. Júlio Verne escrevia-as e a Corazzi editava-as, chamando à colecção “Viagens Maravilhosas aos Mundos Conhecidos e Desconhecidos”.

Livro a livro, aos trezentos escudos de cada vez, compunha-se quase todo o legado de Verne. Viagem a viagem, cheguei a 74 volumes impressos no fim do Século XIX e trazidos na ortografia da época: “No decurso do anno de 186… commoveu singularmente o mundo inteiro uma tentativa scientifica sem precedentes nos annaes da sciencia. Os socios do Gun-Club, associação de artilheiros fundada em Baltimore depois da guerra da América, tiveram o pensamento de estabelecer communicação com a Lua, - sim, com a Lua, - atirando-lhe uma bala.”

Conheci “Clovis Dardentor”, fiz “Dois Annos de Ferias”, passei “Cinco Semanas em Balão” e cruzei-me com “Os Piratas do Archipelago”. De passagem, soube que “O Bilhete de Loteria nº 9:672” não estava nas mãos de “Kéraban, o Cabeçudo” e que este também não tinha “Os Quinhentos Milhões da Begun” (nem ele nem “Miguel Strogoff”).

Não cheguei a ler todos os 74. Sei também que dificilmente os lerei. Além de me saber bem esta saudade, não quero arriscar comprometer o sabor que lhes tenho. É que, sei-o bem, Júlio Verne poderá ter sido o mentor desta minha irrequietude.

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quinta-feira, maio 11, 2006

Ke itumetse* (Okavango, 2003.04.24)


Vejo sempre África com olhos de gostar. Pode ser terra de sangue e fogo, mas sempre me desassossega quando sonho em revê-la. Basta despertar às 5 da manhã, sentir o ar frio no nariz e ver a noite a dar lugar ao sol. Apenas isso…

* “Obrigado“ na língua Setsuana.

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quarta-feira, maio 10, 2006

Entre a morte e a vida (Okavango, 2003.04.23)

- Queres ouvir?, perguntei.
- Sim, virou-se na cama.
- É sobre a viagem. Estás com muito sono?, insisti.
- Não, continuou monossilabicamente.
- Olha o que eles dizem: “A montagem dos acampamentos, assim como a carga e descarga dos veículos será realizada pelos membros do grupo”. Ouviste?
- Sim, arrastou a resposta.
- Tem mais: “Existem riscos e perigos que não estão incluídos numa viagem tradicional: esforço físico para o qual poderá não estar preparado; falta de apoio médico convencional devido a estar em regiões remotas; dificuldade de evacuação em caso de acidente”, disse, olhando de soslaio para lhe perceber a reacção. Ainda queres ir?
- Sim. Ainda quero ir, soprou meia a dormir. Mas tu dormes ou não?
- Ah, e olha aqui mais abaixo: “não espere encontrar o conforto e as condições de higiene a que está habituado; a alimentação está muitas vezes enquadrada com os hábitos e costumes locais, sendo impossível comer outra coisa…
- Zé, interrompeu, por favor, temos os dois que acordar cedo. Já percebi que vamos trabalhar, comer mal e lavar-nos de vez em quando. Mas amanhã falamos disso, ‘tá bem? Agora, por favor, acentuando estas palavras, apaga a luz.

Deitei-me. A Fátima não parecia muito preocupada com o desfile de dificuldades. Melhor ainda. Aconcheguei a almofada e pus-nos a pensar na savana africana. Tinha passado um par de minutos quando, do meio do quarto escuro, ela atirou a última pergunta da noite: Há por lá cobras?

Tentando mostrar convicção, respondi logo de seguida: Sobre cobras, nunca li nada. Felizmente, as luzes já estavam apagadas.

Um mês e 17 dias depois, fomos desper- tados às 5 da manhã. Tinha sido a primeira noite numa tenda em plena selva. Não fora fácil adormecer, pois os elefantes faziam-se ouvir do outro lado do rio. E lembro-me de duas vezes em que, no escuro, me ajoelhara no saco-cama para ver se as hienas andavam junto à fogueira. Eu próprio guardara os restos do jantar no atrelado do camião para evitar que elas rondassem a clareira. Mas era tão grande a excitação que o sono não conseguia impor-se de vez. Quando finalmente adormeci, uma voz chamou-me para o dia que começava a nascer. Íamos fazer o nosso primeiro game walk.

Um game walk é uma caminhada pelo mato sem rumo aparente e com o único objectivo de ver animais selvagens. Duas vezes por dia era hora de game walk: quando nascia o sol e quando ele se punha. Eram os momentos em que a maior parte dos animais saía para comer.

Na primeira manhã, andámos meia-hora sem dar com um sinal de vida. Até que, ao curvarmos um bosque de arbustos, vimos a morte à nossa frente. Era a carcaça de um elefante. “An old bull”, disse o nosso guia, após conferir com o pisteiro. “It died a week ago”.

O Gys, de nome Gysbert e pronúncia Raïss, tinha apenas 23 anos. No entanto, chegara à selva aos cinco. Sabia por isso a sua linguagem. Vira numa pilha de ossos a idade do elefante (pois as presas já estavam gastas), apercebera-se do seu sexo (pela envergadura das ossadas) e sabia-lhe a data da morte (pela decomposição da pele ali ao lado). Há seis anos que levava expedições de ignorância por entre os perigos da savana. E, há talvez seis anos, respondia “Ach, it is a safari myth…” quando perguntavam por cemitérios de elefantes. Mas, sobretudo, ensinava o respeito e a consciência como lições de sobrevivência na selva.

Nós seguíamos-lhe cada pegada como se disso dependesse a nossa vida. Por isso, estacámos bruscamente quando o vimos parar, dobrar-se ligeiramente e abrir o braço direito. Algo andava por ali. Entre o receio e a curiosidade, lembro-me de procurar com os olhos de um lado para o outro. Então, a resposta apareceu, camuflada no capim a 3 ou 4 metros de nós. Era uma pitão.

Três metros de pele luzidia e potência muscular. Enfim, o abraço mortal que todos temiam. Por cima do meu ombro, a Fátima arregalava os olhos. Afinal, ali havia cobras. Nunca me tinha parecido importante dizer-lhe que o Delta do Okavango tinha mais de 70 espécies de serpentes. E, sobretudo, que algumas delas se contavam entre as mais venenosas do mundo. Mas, logo ao primeiro game walk, ali estavam elas.

“Just give her room to go”, ouviu-se, enquanto nós contemplávamos em quase hipnose os seus profundos olhos negros e a língua bifendida que entrava e saía da boca. Progressivamente, a admiração pelo esplêndido animal ia substituindo o medo. Até que ela decidiu regressar ao seu tufo de erva seca. E, com o movimento de um chicote, ondulou vigorosamente das nossas vidas para fora.

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terça-feira, maio 09, 2006

Mordido (Rio Okavango, 2003.04.22)

Logo na primeira noite em África, vi um Rabo de Crocodilo. Custava 59 rands sul-africanos e estava na folha plastificada de um menu, acompanhado de arroz, alface, cebolas e fruta-da-pimenta. “No. It is not good”, tinha aconselhado o empregado.

À quarta noite, o repetido uivar de um chacal amedrontara o nosso sono ao relento em Makgadikgadi. E ao quinto dia, ainda consegui espreitar os estorninhos-de-Burchell e os rolieiros-de-peito-lilás (não há erro no nome) entre os ramos das árvores junto ao Boteti. Mas os animais de documentário, esses ainda não andavam por ali.

Até que, ao sexto dia, abastecemos de víveres frescos e entrámos no Delta do Okavango. Chegara finalmente o território dos grandes e, com ele, a temporada dos banhos bissemanais. Estávamos no Mato.

O Okavango nasce em Angola e capricha em nunca se encontrar com o mar. Aproveita antes a época das cheias para se espreguiçar numa área de 16.000 quilómetros quadrados. Só que, por enquanto, era ainda tempo para os pântanos e os canais serem sulcados pelo mokoro, uma embarcação baixa e de um só corpo talhada de um tronco de árvore.

À nossa espera estavam três mokoros e três indígenas com varas. África também tem gôndolas, mas aqui ninguém canta pelo caminho. Ao contrário, o nosso poler nunca abriu o rosto e só falou quando lhe perguntei sobre a cicatriz desenhada no ombro. “HIV/AIDS”, atirou com secura.

Não fiquei admirado. Afinal, o Botswana tinha mais de um terço da população infectada. Fiquei só a pensar na dura justiça de um povo que estigmatiza com uma lâmina aqueles que carregam a peste. Logo nessa noite, também as minhas convicções seriam postas à prova. Ele não era só poler ou pisteiro. Era também o nosso cozinheiro. Nesses momentos, todo o grupo já sabia porque é que aquele rosto nunca sorria. Mas ele já tinha sido suficientemente marcado. Por isso, nunca ninguém se desviou de um prato. Ou poupou um sorriso.

Entretanto, com o Okavango a baixar até ao palmo de altura, tivemos que seguir a vau. Com 5 ou 6 metros a separar as margens, pensámos em crocodilos e hipopótamos. Mas eram os babuínos quem andavam por ali. Eram dezenas e levantavam os traseiros escarlates evitando a terra que ainda fumegava de incêndio recente. Então a água voltou a subir e voltámos aos mokoros.

Mas, agora, eram as margens que vinham ao meu encontro. As folhas de papiro começavam a tocar-me nos braços, deixando cair ocasionalmente uma ou outra formiga que ali tinha feito corredor. Quando se segue no barco da frente, têm-se habitualmente o melhor ângulo de visão. Mas, neste momento, o meu tronco já ajudava a proa do mokoro a abrir caminho entre a folhagem cada vez mais junta.

Por fim, já mal se conseguia distinguir a distância entre as margens. Tive que juntar a cabeça aos joelhos para que o papiro não me cortasse o rosto. Mas eu era agora o apeadeiro ocasional para todo o tipo de insectos rastejantes. Aranhiços, pequenas centopeias e formigas vermelhas subiam-me pelos braços e passavam-me para dentro da t-shirt. Atrás de mim, a Fátima (também ela a ser açoitada pelas folhas) afastava os aranhiços que me desciam para dentro dos calções, enquanto eu esbracejava, tentando matar tudo o que me ia mordendo. No fundo do mokoro, iam caíndo formigas decepadas. As suas cabeças, mesmo sem o resto do corpo, continuavam presas à pele dos meus braços, como se fossem buscar uma última energia na morte. Eram só cabeça, mas eu ainda sentia as suas mandíbulas como se fossem alfinetes.

Após alguns minutos a ser mordido, o rio abriu numa pequena lagoa. Num impulso, atirei-me à água e esfreguei o formigueiro do meu corpo. Só viria a pensar que há crocodilos no Okavango uma hora depois, quando um balde pendurado no ramo de uma árvore se entornou sobre mim e levou os últimos cadáveres daquele famigerado exército vermelho.

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sábado, maio 06, 2006

Da Estação de Chelas ao Túnel da Bruxa

Aos 9 anos fui pela primeira vez ao Túnel da Bruxa. Eu mais o Malheiro, que tinha um tique em que piscava os olhos e acolchoava duas vezes seguidas a base da genitália. Dizia-se na altura que o túnel era lugar de segredos e que vivia lá um drogado. Naquele dia não chegámos a entrar, mas trouxe comigo umas mãos-cheias de caricas estrangeiras que estavam ali atiradas para o pé da linha. Nem sequer vimos nenhum comboio a sair ou entrar, mas ao chegar à Praceta dissemos que lá tínhamos ido. Questões de virilidade, entenda-se.

Um par de anos mais tarde, acabei por lá voltar. Agora, o troço de linha entre a Estação de Chelas e o Túnel da Bruxa já era feudo para quatro putos que teimavam em querer tropeçar numa aventura. O Bibita tinha mais um ano que o resto de nós e já tinha um penteado à futurista, atributos mais que suficientes para autenticar um líder nos recém-chegados Anos 80; o Jaime e eu andávamos juntos na preparatória (ainda andamos, não é, irmão?); e o Brux, mais adiposo e menos afoito, mas com um humor que antecipava a época.

Naquelas tardes de Verão, já não se viam caricas junto ao Túnel da Bruxa. Mas chegámos a ver o Drogado. Só que o medo tinha já sido trocado por um borbulhar na barriga. E, então, atravessámos o túnel. Para quem ia a pé, era muito grande. E, era verdade, tinha segredos.

Tínhamos que andar pelo lado esquerdo da linha, onde havia uma distância maior até à parede do que o lado direito (dizia-se que quem caminhasse pelo lado errado, era apanhado pelo comboio). E havia uma guarita escavada na parede de tijolo carbonizado, que mais parecia um cinzeiro gigante (era onde o Drogado esperava). Mas, por fim, atravessámo-lo. Até com o comboio a passar. Só que, com os segredos descobertos, o Túnel da Bruxa já não era muito mais do que o Túnel de Xabregas.

Então, sem largarmos o nosso troço de linha, passámos ao desafio seguinte: encafuávamo-nos nas estruturas metálicas das pontes e sentíamos a voragem dos comboios que passavam a centímetros sobre as nossas cabeças. Aventura.

Para nós, os comboios cruzavam-nos a vida de um modo que recordo com paixão. Aliás, ainda hoje, adoro o cheiro forte do óleo esquecido por uma automotora nas tábuas da linha. Reminiscências da viagem.


Fotografia da autoria de Joe Paduano

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sexta-feira, maio 05, 2006

Souflé de hiena (Maun, 2003.04.21)

Tenho estudos.

Falo e percebo línguas.

E leio com regularidade.

Bem visto, acho-me um tipo estruturado. Mas aqueles 3 segundos junto ao Rio Boteti demonstraram que há sempre caminho para um pensamento de alarve e extraordinária estupidez.

Naquele momento, enquanto os cavalos trotavam e as vacas pastavam no leito seco do rio, o ocasional imbecil brilhou intensamente e apenas pôs em causa toda a dieta alimentar de um continente: “Olha, também há bichos destes em África?!”

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quinta-feira, maio 04, 2006

Douglas & Digmore (Makgadikgadi, 2003.04.20)

A primeira vez que ouvi falar do Douglas foi num jantar em Nata. As vozes surgiam em fundo, mas lembro-me distintamente do respeito com que se falava daquele nome. "Douglas really save the day", cheguei a aperceber-me.

Mas só à segunda é que fiquei realmente intrigado. "I was looking for Douglas in the middle of the night, but I couldn’t find it. It was sheer panic", dizia um homem de barba rala e corpulenta meia-idade.

Afinal, quem seria aquele Douglas? Um guia veterano que caçara com Hemingway? Um pisteiro capaz de sussurrar ao ouvido de um búfalo? Os meus pensamentos ondulavam, mas nunca se afastavam muito da figura de Robert Redford em “África Minha”.

Finalmente, ao fim do terceiro dia, conheci o Douglas e o seu parceiro Digmore. E tudo me pareceu mais iluminado e coerente. Realmente, o Douglas era um poço de vitalidade que atendia a todas as nossas necessidades.

Sempre que montávamos acampamento, o nosso guia afastava-se com uma pá e com um banco desmontável. Pouco depois, regressava e enterrava a pá no limite da clareira onde as tendas estavam dispostas. Pegava numa caixa de fósforos, enfiava-a no oco de um rolo de papel higiénico e colocava os dois no punho da pá. Para trás, a uns 30 ou 40 metros do acampamento, Gys tinha escavado um buraco no chão. Por cima, ficava um banco com um círculo cortado no tampo. Era para as nossas precisões. Era o nosso WC, que um dia alguém garbosamente baptizara de Douglas.

Quando visitá- vamos o Douglas, levávamos connosco a pá Digmore. Assim se sabia se alguém estava a ocupar o Douglas: bastava Digmore não estar no seu sítio. No fim do diálogo, utilizava-se o papel higiénico da forma que as sociedades civilizadas preconizaram, acendia-se um fósforo e deixava-se tudo a arder no buraco. Mais uma vez, Douglas e Digmore, qual Batman e Robin, tinham salvo o dia.

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quarta-feira, maio 03, 2006

Os chacais do Nada (Makgadikgadi, 2003.04.20)

"- Two years ago, this was a lake with hundreds of flamingoes", disse o guia.

Custava a crer. Aquilo era o Nada absoluto. Aquilo não podia estar vivo há meros dois anos.

Para onde quer que nos virássemos, o salar de Sowa fracassava em surpreender. Não havia um ressalto que fosse no horizonte e a alva monotonia só era interrompida aqui e ali por uns tufos de erva, amarelados de morte.

Podia ter sido um lago de flamingos, mas hoje já nada cruzava o céu. Nem uma única ave, nem um grito solitário. O ruído era um exclusivo nosso, ao chocarmos os ferros que montavam as tendas ou a arrastarmos os pés na quebradiça película de sal e feldspato.

E, contudo, tudo aquilo era magnífico.

Em Makgadikgadi, no salar de Sowa, descobre-se que o silêncio, quando nos rodeia na sua expressão mais profunda, ganha vida. E não deixa espaço para mais nada, senão a mais solene paz de espírito. Sentado no chão, enquanto o sol se punha em África, converti-me ao vazio completo. E percebi que há momentos em que o nada é o mais próximo que existe de sentir tudo.

Quando a noite caiu, surgiu a ideia: aquele era o sítio ideal para uma noite ao relento. "Just don’t let the fire go", advertiu Gys, o guia sul-africano. Para quem nada sabia daquelas terras, foi o suficiente para espalharmos os sacos-cama em redor da fogueira.

Só que o silêncio é algo que nunca existe na noite de África. E, vindo do nada, um uivo cortou a escuridão, gelando-nos de medo. "Put more wood on the fire", ouviu-se de cima do camião. Pus quase toda a lenha que por ali havia, mas pouco mais consegui que um novo uivo, mais longo e soluçado. "It’s only a jackal."

Apenas um chacal, dizia ele. Naquele momento pensei o quanto da nossa vida se pode pôr nas mãos de um desconhe- cido. Mas, também, aquilo era a vida dele, era o que ele fazia. Instintivamente, sosseguei. E o chacal uivou apenas mais uma vez. E mais distante, algures no meio do Nada.

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