domingo, setembro 30, 2007

A Morte em pele e osso

É automático: sempre que oiço a palavra Bologna penso nas camisolas do principal clube da terra. São azuis escuras e vermelhas escuras, com cada cor em sua risca grossa ao alto. No conjunto, são tão alegres quanto uma tarde de Inverno. Mas, sobre os relvados enlameados do Norte de Itália, formam um quadro duro e vigoroso, como armaduras alinhadas para a batalha.

No segundo seguinte, penso na mesma camisola já vestida por um checo de cabelos longos e 1 e 94 de altura. Meio tanque de guerra, meio reincarnação de Átila, Tomás Skuhrávy era sobretudo um temível ponta-de-lança com futebol feito de tensão e músculo. Lembro-me dele e revejo de seguida golos pouco artísticos ao segundo poste ou cabeçadas a dizer que sim a um cruzamento de El Pato Aguilera. E é mais ou menos por essa altura, ao recordar o nome do uruguaio, que me dou conta do erro.

Estava novamente confundido. Se era a quinta ou a sexta vez já não tinha a certeza. Certo é que me tinha voltado a enganar. Não nos cenários, pois as camisolas sombrias e o possante Skuhrávy eram bem reais. Só que tudo isto existia numas centenas de quilómetros ao lado. Não em Bologna, mas em Genova.

É que desde que me lembro que, mesmo não conhecendo nenhuma das cidades, sempre confundi uma com outra. Se a Genova-portuária-e-futebo- lística ainda ocupava um pedaço do meu imaginário, já para Bologna falhavam-me as referências. Verdade seja dita, Bologna não passava para mim de um familiar mal-entendido. Só que estava destinada a não permanecer assim durante muito tempo.

Há três semanas, de um modo pouco menos que acidental, descobri Bologna. Imediatamente, senti-me a ser aspirado para um ambiente de sombras. Bizarra e espectral, esta cidade de antiga cepa fez-se assim um desejo para um dia de aguaceiros.

Tudo poderá começar pelos corredores do Museo Zoologico, onde olhares vítreos espreitam por detrás dos nossos ombros. Ali, macacos, ursos e lagartos parecem ter sido tocados pelo Doutor Frankenstein da taxidermia. Hoje nada lhes resta que tenha a ver com vitalidade. São apenas espécimes com esgares de dor ou raiva e que parecem ter sido torturados mesmo após a morte. Como se os alfinetes do taxidermista os tivessem esvaziado da sua alma, legando-lhes uma sub-vida de sofrimento. Nas prateleiras do Museo Zoológico, alinham-se num espectáculo de monstruosidades legendado em letra antiga. É que algumas daquelas estatuetas tinham sido esvaziadas das suas entranhas há quatro séculos atrás. E hoje ali estavam em desesperado abandono, parecendo exibir a expressão que tinham no segundo anterior ao momento da sua morte.

No número 48 da Via Irnerio fica o Museo delle Cere Anatomiche. Ao contrário do que o nome poderia fazer supor, não se reedita aqui qualquer Madame Tussaud. Aliás, não se aconselha a visita a quem procura o divertimento leve. Aqui, mesmo com a incógnita do que é verdade ou mistificação, o que se mostram são os infelizes desenlaces da vida humana.

Aos moldes em cera a retratar malformações genéticas juntam-se os esqueletos fetais atirados à condição de curiosidades médicas. Não fosse o pudor com que se olha a morte infantil e ter-lhe-iam chamados o Museu das Anormalidades. Fiquei com que a ideia que quem ali entrar passará a ter uma imagem bem vívida de pesadelo quando ouvir “Menino ou menina? Que venha perfeitinho é o que interessa”.



Ainda tocada por um véu de trevas mas já fora do velho centro da cidade, fica a Chiesa della Santa. É aqui que, em pose de macabra santidade, descansa Caterina de Vigri.

Do mesmo modo como a cidade de Bologna terá mais para ver do que estes escuros caminhos, também esta Igreja da Santa nos aparece como um belo templo de dourado silêncio. Mas é fora dos nossos olhares mais imediatos que, sentada num trono de morte, fica a sua mais valiosa relíquia: a múmia negra de Catarina.

Num quadro de inesperada ternura, Catarina está vestida de freira e tem nas suas mãos uma cruz dourada. Já assim está há muitos séculos, imóvel e incorruptível, escurecendo dizem que pela influência das velas. Já vi múmias no Museu Egípcio do Cairo e, na sua perseverança, parecem ter uma expressão de quem fixa por muito tempo uma lâmpada. Aguentaram quedas de civilizações, mas ninguém as arrisca à ininterrupta exposição. Assim, de vez em quando são recolhidas e trocadas por outras.

Mas, ao que é dito, Catarina não abandona a vigilância da sua congregação. A sua face e as suas mãos estão negras e o seu rosto parece cada vez mais definido. Só que, no seu pedestal, Catarina parece consciente da sua santidade. E, apesar de horrível, não deixa de me assombrar para uma visita à atmosférica Bologna.

Hoje, sei que se foram os breves segundos de dúvida: o checo jogava no Genova.


Agradecimento a Curious Expeditions pela epifania e pelas imagens (excluindo a primeira, de autor desconhecido).

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terça-feira, setembro 18, 2007

Maine no Outono

Para mim, a América é verdadei- ramente uma questão de tempo. Há-de chegar um ano, na altura que for a certa. Sem pressas. Porque a minha América – o país – também tem que esperar pela roda dos anos. Paradoxalmente, é uma América paciente e contemplativa. Porque tem tudo a ver com o tempo.

Quando for Outono, vou querer estar no Maine. Se tiver sorte, hei-de dar por mim a acordar numa cabana com coisas penduradas e tinta branca a esfoliar-se das paredes. Chegando à janela, vou encontrar o quadro que me puxou para aqui: a folhagem em múltiplos tons de fogo. E está sol. Deve estar frio, mas também está sol.

Ao sair para o bosque, puxo a gola para cima. Vejo ao longe uma antiga camioneta Ford. Está abandonada e só mesmo a ferrugem é que lhe encontra utilidade. Olho para dentro do tablier e encontro uma pequena poça de água junto aos pedais. Depois, sigo o carreiro, pensando que no caminho de regresso tenho que levar lenha para a lareira.

Durante meio quilómetro, acompanha- -me um ribeiro que gargareja de encontro às pedras. Depois, chego à ponte. É uma ponte antiga de madeira, daquelas cobertas. O sol continua a acompanhar-me e agora está a espreitar através das frinchas na madeira.

Quase sem me aperceber, o porto surge-me à vista, aos pés de um horizonte cor de chumbo. Enquanto o tempo passava, as nuvens foram-se encastelando por cima dos barcos que hão-de sair à pesca da lagosta. Em fundo, o Oceano promete o apocalipse em ondas de seis metros. É o Inverno que ameaça, endurecendo os dias dos que aqui vivem todo o ano.

Percebo que a partida já esteve mais longe. Marchando inexoravelmente, Novembro está quase no fim. Então, sinto que outros sítios me esperam. É tempo de New York.

Fotografias de ToniLuca, Vincent's Images, shrike1964 e l'insouciant1

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terça-feira, setembro 11, 2007

Lição de Geografia

- Recent polls have shown a fifth of Americans can't locate the US on a world map. Why do you think this is?

Miss South Carolina, pestanejou duas vezes e, sem perder a face, respondeu:
- I personally believe... that U.S. Americans are unable to do so... because, uh, some... people out there in our nation that don't have maps... and I believe that our education like such as in South Africa... and, uh, the Iraq... everywhere like such as. And I believe that they should, uh... our education over here... in the U.S. should help the U.S. and should help, uh, South Africa and should help the Iraq and the Asian Countries. So will be able to build up our future.

A parte final é apenas uma montagem, mas isto aconteceu há um par de semanas no extraordinário Miss Teen USA.

Já para si, que até sabe as capitais do Corno de África, isto não vai custar nada. E, caso queira, pode até escolher ser loura.

Só uma nota: faz vício.

sábado, setembro 08, 2007

De tapete voador

Noite após noite, a opinião cresce na cabeça de Sven: o Médio Oriente é uma região com fraco saneamento básico onde gente de discutíveis ambições se anda a explodir em mesquitas e centros comerciais.

À distância de quatro ou cinco fusos horários e no conforto do prime time, tudo o que o dinamarquês (ou um canadiano ou austríaco) vê parece desafiar a inteligência. Mulheres de negro a prantearem com as mãos no ar e um sapato sem pé que jaz numa rua coberta de detritos. Pode ser em Ramallah, Tel-Aviv ou Kerbala, “confesso que já não presto atenção”. Judeus ou muçulmanos, libaneses ou iraquianos. Vista do Ocidente, a banalidade já fez esmorecer a consternação.

Ninguém duvida que no Médio Oriente as diferenças de opinião são frequentemente discutidas num alto patamar de brutalidade. Aqui, poder-se-ão criar inimigos mortais apenas por se ter nascido. Seja-se do mesmo país, da mesma raça ou da mesma religião. O sunita não partilhará do prato do xiita e o sírio será olhado com desdenhoso receio pelo libanês. Mas, na sua voraz senha colonialista ou imperialista, os Ingleses, os Franceses e agora os Americanos nunca fizeram mais do que piorar o que vieram encontrar. Tudo começa na própria definição de Middle East, vastamente criticada pelo seu eurocentrismo (mais de metade da população mundial está a Oriente do Médio Oriente). No seu papel de umbigo do mundo, as potências europeias decidiram ainda decretar a prioridade à identidade nacional e à política de fronteiras sobre a visão religiosa.

Historicamente, a raiz dos repetidos fracassos ocidentais no Médio Oriente tem sido a despreocupada ignorância. Ultimamente, na mesma linha de ligeireza, a exportação principal são sistemas políticos: ”Wolfowitz, você que é filho de uma família de judeus de Varsóvia vai-me ajudar a pôr aqueles iraquianos a viver em democracia. Não se preocupe muito com detalhes. Tenho passado anos e anos a negociar petróleo com os Árabes. Eu vou coordenando os passos”. Porque tudo isto se passou praticamente anteontem, ainda nos consegue parecer mais risível. Mas como, Senhor Bush, a ignorância não passa de uma etapa a caminho da luz, aqui vai.

Faz sentido começar pela religião. A principal religião no Médio Oriente é o Islamismo. Entenda-se assim que não há nada com o nome de Muçulmanismo. Há é ser-se Muçulmano, ou seja professar o Islamismo.

Maomé é tido como o fundador da religião islâmica e o último mensageiro da palavra do Deus Alá. Mas, ao morrer sem sucessão, deixou aberto o caminho para a divisão do Islamismo em dois ramos principais: o Sunismo e o Xiismo. Os primeiros (cerca de 85% do número total de muçulmanos em todo o mundo) defendiam que quatro califas eleitos deveriam assegurar a continuidade, enquanto os Xiitas opinavam que Ali ibn Ali Talib – como primo e cunhado de Maomé – seria o legítimo sucessor.

Fechando o capítulo religioso, entro no étnico: ser Árabe não é o mesmo que ser Muçulmano. É-se Muçulmano como se é Cristão e é-se Árabe como se pode ser Chinês. E um Chinês pode ser Muçulmano, assim como há Árabes Cristãos. E Árabes Judeus.

No Médio Oriente, abundam os grupos étnicos: já se falou dos Árabes, mas ainda existem os Persas (sobretudo vivendo no Irão, onde apenas 3% da população é Árabe), os Turcos, os Judeus (cujo nome da religião é o mesmo do grupo étnico; ou seja, há seguidores de Alá que pertencem há etnia judaica), os Azeris, os Berberes, etc.

O Médio Oriente não é fácil de compreender. Eles mesmo, os que lá vivem, têm grandes dificuldades de entendimento. Mas, nesta linha de consenso e paradoxo, uma coisa tenho que dizer: sinto-me desejoso de lá regressar. Já vão fazer cinco anos que no Cairo vivi os mais atmosféricos e intemporais momentos da minha vida de viagens. E se há uma cidade, também uma capital, onde sinto que posso esperar o mesmo é Sana’a.

Pelos desertos e montanhas do Médio Oriente, não deverão faltar terras que não mudaram de rosto em séculos de existência. Só que essas estarão separadas por estradas de morte e desfiladeiros insuperáveis. A Sana’a, a capital do Iémen, chega-se de avião. Mas deverá ser percorrida de tapete voador…

No último ano, Sana’a foi-me apresentada pelo Trofimov, um ucraniano com cidadania italiana e experimentada pelo Horwitz, um judeu americano. Anteontem, o Eric Hansen (que ainda não conheço) prometeu falar-me mais daquele país onde todos mascam khât nos tempos livres e as mulheres têm uma média de 7 filhos.

Mas, não deixando de agradecer todas as ajudas, o que quero mesmo é cruzá-la de tapete voador.

Infografia de FOXnews.com e fotografias de Mideastimage e Eesti

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