sexta-feira, abril 28, 2006

Safari – Dia 1 (Joanesburgo, 2003.04.18)

Quando ali entrei, tinha o reencontro com o Sahara na cabeça. Seriam quinze dias a atravessar a Líbia no dorso de um camelo. Seriam duas semanas de uma só rotina, em que o horizonte se repetiria no topo de cada duna. E, sobretudo, seria o cru silêncio a testar os limites de quem não era talhado para aquela vida do deserto. Seria a revelação de uma vida.

Só que naquele dia, dei de caras com o inesperado. E quando dali saí, o meu destino mexera-se no mapa. O desconhecido ainda ali estava e até o continente se mantinha, mas a linha do Equador passara para norte. Agora, era o Botswana que me esperava. E o deserto fazia-se selva.

Confesso que no dia em que aterrei em Joanesburgo, ainda me sentia ultrapassado pelo volte-face. Acho que ele se chamava Miguel, mas não tenho a certeza. Sei que me falou do Delta do Okavango com o maior entusiasmo com que se pode falar a um desconhecido. E sei que lhe bastara meia hora de discurso arrebatado para me fazer largar as areias para outros quaisquer quinze dias. Agora, já cá estávamos, a Fátima e eu, numa das mais perigosas cidades do mundo.

De Jo’Burg pouco se viu. Encontrei muros com 6 metros de altura guarnecidos com arame farpado e painéis de “Armed Response” ou “Watch Dog in Patrol”; assisti a sanguinolentos noticiários de TV; e ouvi alertas a dissuadirem-me de ir até ao centro da cidade ou aos subúrbios ou às townships.

Tudo isto me intrigou. O que é feito dos sonhos de Biko e Mandela? E onde é que ficou a lição de humanidade da Truth & Reconciliation Comission? Porque é que esta nova África do Sul confina a minha segurança a uma cerca electrificada? Acabei por adormecer a pensar neste filme a preto e branco.

Seria a última noite num colchão decente durante um par de semanas. Na madrugada seguinte, teríamos pela frente onze modorrentas horas embaladas pelo matraquear de um motor de camião.

Ao princípio da tarde, já tinha um carimbo do Botswana no passaporte. Safari.

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quinta-feira, abril 27, 2006

Acidentes e Bençãos

John Flinn é o editor de viagens do San Francisco Chronicle. Não o conheço e nunca tinha lido nada que ele dissesse. Mas ontem foi-me apresentado pelo Rolf Potts, que publica o meu blog de referência e é um dos maiores conta-quilómetros humanos da última década.

Num artigo recente, o Flinn escreve textualmente isto: “When things go wrong - and they probably will - remind yourself that if this doesn't kill you - and it probably won't - it will make a great story. Your friends don't want to hear how beautiful the Taj Mahal is. They want to hear about the psychotic driver who kicked you off the bus and left you stranded in a one-dog town.”

Anteontem cheguei da Provença. Foi o regresso de mais um sítio entusiasmante e belo de tirar o fôlego. Mas a memória maior está destinada a ser dos sarrabulhos que me caíram em cima e com os quais a mente mais pessimista não contaria.

Diz o Flinn que os amigos gostam de ouvir estas histórias. Pode até ser. Para já, só digo que é uma bênção esta família que eu tenho. Preferia evitar-lhes estas confusões, mas não há melhor que a Fátima e o Afonso para me fazerem reencontrar com o que é importante.

Talvez lá para Setembro os meus relatos cheguem à acidentada Provença. Por enquanto, regresso ao ano de 2003 e a uma experiência de sonho: o safari no Delta do Okavango.

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quinta-feira, abril 20, 2006

Amanhã vou à França

Só pus uma vez os pés em França. E, como foi numa escala para Lisboa, não conta.

Contudo, lembro-me de duas coisas: 15 minutos que se evacuaram numa sanita do Charles De Gaulle e o mais extraordinário set de bocejos de toda a minha vida. Sonoros, encadeados e muito ambientais. Mesmo à homem.

E isto é a minha história francesa. Nada mais. Aliás, nunca tive vontade de mais.

Mas amanhã vou à França. Ter um filho com 18 meses implica ir a sítios onde as sopas não têm patas a mexer. Por isso, vou alugar um carro e perder-me na Provença. Quatro dias.

Enfim, quatro dias de cozinha mediterrânica até nem parece má ideia...

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quinta-feira, abril 13, 2006

À saída do nevoeiro (Tanger, 2003.03.04)

A superstição e os talismãs são proibidos pelo Corão. Mas os muçulmanos do Magrebe parecem acreditar que toda a sorte nunca é demais. E assim, a cada porta, recebem-nos sob o auspício da “Mão de Fatima”.

E, depois da perseguição da véspera e do atropelamento da manhã, também nós acolhemos com agrado a companhia de uma Hamsa. Veio da Jemaa el Fna, a praça maior de Marrakesh. Podíamos ter comprado uns dentes humanos ou um unguento para as dores de intestinos (também por lá haviam). Mas de uma praça que em português se traduz para “Assembleia dos Mortos”, pensou-se que trazer um amuleto não prejudicaria. Afinal, até ao ferry de Tanger, ainda estavam por fazer 660 quilómetros.

A minha fatia particular de boa fortuna não demoraria a chegar. É que, pela primeira vez em Marrocos, comi e gostei. Não de uma tagine ou de uns couscous, mas de um gorduroso cheeseburger. Alcatifou-me o estômago e estimulou-me o ânimo. Entrei no jipe a resfolegar: “Vamo’ lá embora”.

O último barco para a Europa saía às 10 da noite, mas o alcatrão macio da auto-estrada estava à nossa espera em Casablanca. Ainda tínhamos que vencer os engarrafamentos da cidade e desviar dos camiões TIR que ultrapassam pela direita fora do traço exterior da estrada. Mas, quando a noite caiu, ela chegou: a N1.

O que nunca poderíamos esperar, nem nos nossos mais loucos pesadelos, era encontrar ali a mais difícil condução dos últimos dias. Ali, não estava um tapete de alcatrão. A Casablanca-Asilah deixara de ser uma auto-estrada e era agora uma sombra negra com 10 metros de comprimento. Ou seja, aqueles que o nevoeiro me deixava ver.

Durante uma centena e tal de quilómetros, pouco mudou. O sopro branco do Atlântico continuava a afrouxar o nosso ritmo e a acelerar os nossos nervos. E, no tablier, o relógio parecia andar mais rápido que nunca. Nos bancos de trás, rezava-se. Rezava-se mesmo. Mas não propriamente para chegarmos ao barco a tempo. Agora já era para chegarmos em segurança. Pensando bem, quando estamos num carro que agora já entrava a 120 à hora no denso nevoeiro, não deve haver lugar mais nervoso que o banco de trás.

Quando chegámos a Asilah, o ferry estava a 45 quilómetros e a 40 minutos. O nevoeiro ia já ficando para trás e, com a visibilidade, entrou o optimismo. Devia dar. Se nada mais corresse mal, ainda hoje cruzávamos o Estreito de Gibraltar. Foi então que, já com a cabina da portagem à vista, eles apareceram: era a Polícia.

Enquanto parava, pensei: “Excesso de velocidade. Apanharam-me em excesso de velocidade.” Eram jovens, o que num polícia de trânsito pode ser um excelente ou um terrível sinal. Tanto podiam ser compreensivos e despedir-nos com um ralhete como reter-nos ali enquanto passavam vagarosa e zelosamente a sagrada multa. Mas, não. Não eram um nem outro. Aliás, nem sequer eram dois escroques a querer fazer render o turno da noite.

Eram simplesmente dois sujeitos cruéis, vindos da lodacenta boca de esgoto da condição humana. Dois nojentos que optaram por nos deixar à conversa durante um quarto de hora, sem avançarem com uma acusação nem pedirem quaisquer documentos. Duas pústulas infectadas que, à vista do meu desânimo e no minuto em que a âncora devia estar a subir, deram-nos ordem de seguida. Afinal, concluíram com a candura possível em dejectos daquela espécie, “só ainda não seguiram caminho porque não quiseram.”

Na alvorada seguinte, após uma noite num qualquer hotel de estrada e algures no Km 2.740 da viagem, entrámos no maldito ferry com a disposição de uma ferrujenta máquina a vapor. A “Mão de Fatima”, essa, anda ainda lá por casa, para aí no fundo de uma gaveta.

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terça-feira, abril 11, 2006

O atropelamento (Marrakesh, 2003.03.04)

A Terça-Feira de Carnaval amanhecera gloriosa. O céu não dava hipótese às nuvens e o vidro do jipe até aumentava os 24 graus lá de fora. Em suma, era dia de t-shirt.

Ao volante, eu estava com uma disposição de assobio. Aliás, ninguém ali acusava o facto de ser o último dia em Marrocos. Não era bom estarmos ainda a 140 quilómetros de Marrakesh, quando já nos devíamos preparar para sair de lá. Mas, depois recuperava-se, pensei.

A rodar pela estrada do Atlas, com as suas faces enrugadas e as farripas de neves eternas à vista, era preciso mais que um atraso para trazer o mau humor para dentro do Freelander. Mal sabia eu que, algumas curvas adiante, me esperava o pior momento de toda a viagem.

Ao longe, sete ou oito crianças brincavam na berma da estrada. Decidimos logo que iam ficar ali os nossos últimos rebuçados de mentol. Primeiro, a maior indiferença; quando a primeira arriscou, gerou-se o entusiasmo; e, num ápice, deflagrou a batalha campal. Em dois minutos, as crianças desgrenhavam-se, esgravatavam o chão e chocavam de cabeça contra as portas do carro. Lutavam por rebuçados de mentol. Era demais para mim.

Nunca me sentira tão arrependido de interfe- rir na vida de gente que me é estranha. Pedi ao Pedro para fechar a janela e, por duas ou três vezes, pisei com força no acelerador, tentando que o troar do motor as separasse. Umas pararam, mas outras somente se afastaram. Então, decidi deixar aquele horrível cenário.

Mas, passados uns duzentos metros, fiz inversão de marcha. Afinal, eu tinha criado a confusão. Não podia simplesmente ir embora. Quando cheguei junto a elas, já ninguém rebolava pelo chão. Agora, todas se juntavam num círculo. Saí do jipe e aproximei-me. No meio, uma rapariga com oito ou nove anos choramingava. Olhei para baixo e vi-lhe o pé. Torcido. Partido.

E eu era o responsável. Tinha-a atropelado. Ninguém parte o pé a lutar com raparigas da mesma idade. Tentei falar com ela, mas não sabia francês. Ninguém ali falava francês. Há quilómetros que eu não via uma casa ou algo que pudesse ter um telefone. Nervosamente, eu repetia “hospital, hospital”. Mas nada, ninguém percebia nada.

Pensei em regressar ao jipe e procurar um telefone. Isso, ia fazer isso. Mas, antes de sair dali, num gesto que ainda hoje não percebo se me choca, peguei na mão dela e fechei-a num rolo de dirhams. Não sei quantos. Provavelmente, mais do que o suficiente para sustentar uma pobre família do Atlas e toda a sua prole durante um ou dois meses. Não era para comprar a minha redenção. Queria… sei lá o quê. Passei-lhe a mão pelo cabelo e voltei ao carro. Tinha que arranjar forma de telefonar.

Andei, andei e nada. Não se via uma merda de um restaurante de estrada. Foi então que, separadas por cinco minutos, cruzaram-se connosco duas ambulâncias. Mesmo que não tivessem sido chamadas para a menina, iam passar por ela. Naquela estrada, não havia forma de não passarem por ela.

Uma hora à frente, estava Marrakesh. Chamam- -lhe a “Pérola do Sul” ou a “Cidade Rosa”. Para mim, significou quatro horas de uma terra que não vi como gostaria e que não senti como queria. Não havia forma de recuperar aquela disposição da manhã.

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sexta-feira, abril 07, 2006

Na retrete (Ouarzazate, 2003.03.04)

Nós andávamos à procura. Ele apenas andava por ali. Era um professor universitário francês que até falava português. E apontou-nos o Es-Salam porque não era caro nem mau.

Sei que fizeram tombar sobre o homem as mais terríveis maldições, mas é chegada a hora de o dizer: a 3 contos o quarto, as torneiras não têm banho de ouro. E até são admissíveis as toalhas rasgadas e o papel higiénico que não aparece. Nesses momentos, tem é que se pensar que há pior. E passo a transcrever com uma pronunciada vénia pela aromática lição de vida:

"Uma das casas de banho estava espectacularmente entupida: a única que restava era utilizável, mas não convidativa. Como quase todas as casas de banho egípcias, a retrete estava equipada com um pequeno cano (não muito diferente do bocal de um fagote) que esguichava água para cima para abluções íntimas. O cano tinha uma orla de excrementos de uma pessoa qualquer. (…) Em criança, a minha primeira visão de uma casa de banho de buraco no chão foi em França (…); mais tarde, a minha aculturação iemenita ficou completa quando renunciei ao papel higiénico.

E [tenho] algumas recordações menos felizes: aquela vez em que os meus óculos, lubrificados pelo suor, me escorregaram do nariz para um buraco malcheiroso perto do Mar Vermelho, e o horror, o horror de um cagatório público nos arredores de Simferopol."

Porque, na realidade, quando é chegada a hora, há é que senti-la com prazer. E sigo em respeitosa homenagem:

"Tenho muitas recordações agradáveis de defecar em lugares distantes: num alpendre sem porta com vista para o Estreito de Harris, cravejado de ilhas; no baluarte de um castelo iemenita situado sobre um penhasco alcantilado, com o vento a soprar por ele acima; fustigado pela espuma das ondas na popa de um
sambuq ao largo das ilhas de Kuria Muria; dentro do guarda-fatos de uma mansão otomana em Safran Bolu."

Fecho com um puxão de autoclismo: quem não quiser, que se encolha.

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quinta-feira, abril 06, 2006

Thriller em Mollywood (Aït Benhaddou, 2003.03.03)

Quando tinha um bom punhado de quilómetros pela frente, decidi levar a estrada de Er Rachidia para Ouarzazate na descontração; quando tinha mesmo que ganhar tempo, fui aliviado de 400 dirhams por excesso de velocidade. Em suma, fruto das minhas ponderadas opções, acabei por chegar a Aït Benhaddou eram já 6 e 10 da tarde.

Faça-se justiça, é por esta hora que o ksar ganha mais encanto. Só por aqui andam os que cá vivem e o sol decide vir corar o ocre destas paredes de adobe. Às 6 e 10 da tarde, quem é estrangeiro sente-se mais estrangeiro. E acolhe o convite de coração aberto.

Já não me lembro do nome dele. Lembro-me que era tuaregue e que dizia que tinha sido figurante no “Gladiador”. Ali mesmo em Aït Benhaddou, por onde também andaram as câmaras que filmaram “Lawrence da Arábia” e a “Jóia do Nilo”. Era um homem alto, garboso, com barba rala e figura de chefe de clã.

Era também um compêndio de negociação. Falava baixo mas com firmeza. A sua loja tinha aquela camada de pó que nos fazia pensar em autenticidade. E mesmo que ali houvesse um tapete ou uma espada feita por chineses, o fumo das chávenas de chá levavam-nos para tempos antigos.

Durante uma hora e tal, tentei que o meu francês à Bolöni com entoação à Chirac lhe fizesse ver que havia um limite para o que eu podia gastar. Mas, entre as minhas simulações de retirada (porque era muito o que ele pedia), os seus lamentos por uma família grande a sustentar (porque era pouco o que eu oferecia) e um incontável número de sentidos abraços (porque a nossa amizade não estava em causa), acabei por trazer um fantástico tapete e um pilão de almofariz que ainda hoje me apaixona.

No fim, paguei muito menos do que ele pedia. Mas talvez tenha pago mais do que era o preço. Certo é que com o nosso acordo tinha também chegado a noite escura. E numa terra feita de terra, água e palha, não se pode esperar mais luz na rua do que o luar e os pequenos candeeiros em cada casa.

Só olhos treinados nos conseguiriam encontrar o caminho de volta. Não os nossos, certamente. Acompanhámos o último abraço com os bons augúrios com que os amigos se despedem (“Que o Profeta guie os teus passos na estrada da vida”) e seguimos atrás do jovem empregado do tuaregue.

Um vendedor já embriagado insistiu para que lhe comprássemos um tapete. “Não tenho mais dinheiro” e acelerei o passo. Mais à frente, o miúdo descia de pedra em pedra, com a Fátima, o meu irmão e a namorada a esforçarem-se para o acompanhar. Era como se tivéssemos os olhos fechados. Não víamos mais que dois metros adiante, mas não podíamos perder o nosso guia na sua gincana entre as mais estreitas ruelas. Ou seja, íamos mais rápido do que era aconselhável, fazendo daquela descida uma atabalhoada escorregadela no escuro.

Até que começaram os gritos. Primeiro ao longe, depois cada vez mais perto. Traziam lanternas e davam ar de seguir exactamente o nosso caminho. E foi quando chegámos à margem do rio, que percebemos que ali éramos a presa. Eram dois e o modo como agitavam os braços acabou com as dúvidas. Pior, galgavam aquele terreno pedregoso com uma incrível agilidade. De tal modo que, quando terminámos a assustada travessia do rio, já apenas um par de metros nos separava deles.

Finalmente, alcançaram-nos. E agarraram o miúdo pela camisola, enquanto lhe gritavam com violência. Os nossos olhos estavam mais habituados ao escuro, mas não o suficiente para percebemos o que se ia passar. Então, enquanto eu agarrava o meu canivete, o Pedro aproximou-se deles e, do alto do metro e oitenta e tal, disparou forte em português: “O que é que se passa aqui?”

Talvez eles não estivessem à espera. Talvez pudessem esperar para resolver o seu problema. A verdade é que tudo ficou por ali, num feliz anti-clímax. Ainda deu para vê-los atravessar o rio. Ainda deu para ouvir as suas vozes a troar. Para mais não deu: estávamos já em trote rápido dali para fora, ainda a tremer com o susto de uma vida. Vá, com o susto de uma viagem.

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