sexta-feira, março 31, 2006

Life Support System

Para onde quer que eu vá, seja praia ou deserto, selva ou cidade, há três coisas que têm sempre lugar cativo na bagagem.

Ou porque as acho indispensáveis ou porque podem fazer falta ou simplesmente porque nem ocupam muito espaço. Na realidade, elas vão porque sim. Vão porque sempre foram.

Posso estar apertado num avião e ter que aterrar no meio de 38 graus centígrados. Mas uma coisa eu garanto: as minhas botas Timberland estão calçadas. Adoro-as. Atravessaram comigo um rio marroquino infestado de bilharzíase (sem deixarem entrar uma gota), protegeram-me das cobras no capim do Botswana e suportaram um dilúvio nas Terras Altas da Escócia (sem deixarem entrar uma gota). Acho que isso faz delas minhas amigas. E se nada disto tivesse acontecido, gostava delas na mesma. Muito.

Coisa número 2: a lanterna Maglite. Comprei-a por dar a melhor iluminação. Vim depois a saber de um assaltante em Joanesburgo que ficara KO por ter levado com uma na cabeça. Rebentou-se toda ao cair no chão, mas isso nada retira à multidisciplinaridade do objecto. Seja como for, é tão boa que substitui os faróis de um carro. E depois tem o peso certo que uma lanterna deve ter.

Já o meu canivete Opinel foi encontrado em Florença num Fiat de aluguer. A partir daí, nunca mais deixou de ir comigo para fora. Eu sei que a Fátima pode ter razão: depois do encontro com os detectores de metais do Museu do Vaticano, porque é que insisto nestas companhias? Mas imagine-se que eu precisava dele um dia. Aí, dava mais jeito se ele estivesse ao pé de mim, certo?

quinta-feira, março 30, 2006

A drogaria (Merzouga, 2003.03.03)

O primeiro cavalo que montei chamava-se Absinto.

E o meu primeiro camelo era o Jim Morrison.

Agora pergunto: mas eu tenho cara de quê?

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quarta-feira, março 29, 2006

Sahara (2003.03.03)

Em Erg Chebbi, encontrei uma fonte de alma. Só mais tarde percebi que tinha ganho uma nova textura. Hoje, faz-me falta aquele imenso.

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terça-feira, março 28, 2006

A filha do profeta (Merzouga, 2003.03.02)

Sabia que ele se chamava Aziz, que esperaria por nós em Erfoud e que ia ser o nosso guia pelo deserto. Na verdade, eu só não sabia por onde é que ele andava.

Para já, todos ali diziam chamar-se Aziz e todos eram sobrinhos do Ali Cojo. Mas daquele por quem esperávamos há tempo demais, não havia sinais. E o certo é que, com todo aquele atraso, já íamos cruzar o deserto à noite. Foi então que ele apareceu. Passada larga, nariz de águia e claramente estrábico: era Aziz, o genuíno.

Até chegarmos às dunas, tínhamos o deserto na sua face mais agreste: a hammada. Uma pista de terra com pedras soltas a açoitarem o jipe e um leque de poeira a abrir-se atrás de nós. Foi aí que o ouvi pela primeira vez: “Piano, piano se va lontano”. Abrandei. Não havia como não confiar num homem que parecia ter o deserto cartografado na cabeça.

De repente, vindo do nada, o Aziz tombou um braço sobre a cabeceira e, com ar melífluo, apontou para a Fátima e para a Raquel: “Tu és a Fatimah e tu és a Khadija”. O espanto foi geral. Então, perguntei-lhe:
- Aziz, o nome dela é mesmo Fátima. Como é que sabias?
- Fatimah? Não pode ser! Vocês não são muçulmanos.
- Não. Somos portugueses. Mas eu vivo com ela. E chama-se Fátima.

Só acreditou quando viu o passaporte. Era algo que ele dizia às estrangeiras, uma brincadeira. E aqueles eram nomes comuns entre as muçulmanas. Fatimah era o nome de uma filha de Maomé, como Khadija era o nome da sua primeira mulher.

Íamos já montados nos camelos, a ondular pelas dunas, e o Aziz ainda repetia a história a todos os berberes da caravana. Um a um. Maçando.

Quanto a mim, estava fascinado. O céu tinha a cor mais negra que podia existir e era adornado pelas mais refulgentes estrelas de sempre. Com a gentileza de um trovão, o Sahara começava a fazer parte de mim.

Às cinco da manhã, encontrámo-nos de novo. Desta vez na companhia do sol, que se levantava vermelho atrás das dunas de Erg Chebbi.

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segunda-feira, março 27, 2006

Estradas dos Solitários (2003.03.02)

Até ao último metro que fizemos em Fés, nunca deixámos de estar desorientados. Sabíamos que o Sul era o destino e que a N8 e a N503 levavam-nos ambas para baixo. Mas ambas teimavam em aparecer.

Quando uma tímida seta apontou a N503, atirei-me para fora de toda aquela desori- entação. E deixei a labiríntica Fés para trás. Ainda faltavam 450 quilómetros para chegar à minha paragem, mas agora sentia-me inexplicavelmente perto.

Aos poucos, a N503 ia-me dando a ideia de não ser uma estrada de carros. Ou motas ou camiões. O alcatrão era decente e as curvas não eram de entontecer. Mas ninguém se cruzava connosco. Lembrei-me da máxima do meu pai: “Se um restaurante está vazio, é porque não é boa a comida”. Estaria a estrada cortada? Teria salteadores? Ou polícias corruptos?

Ainda hoje não sei porque é que a N503 não era uma estrada para Norte. Também não perguntei. Nem aos solitários que nos apareciam de meia em meia hora a patrulhar os seus rebanhos monte abaixo. Porque esses encontravam no serpentear do alcatrão as únicas manifestações de vida em tardes inteiras sozinhos com os seus pensamentos.

Qualquer carro que passasse ia na direcção de uma vida melhor. Para eles, alguns com 8 ou 9 anos, o fim da estrada era o sonho que havia uma tarde de aparecer. E um só carro que fosse era um sinal de esperança.

Para nós, a N503 (e depois a N13) passou a ser uma estrada de fantasia, onde as mais perfeitas rectas de todo o mundo corriam emolduradas pelo Atlas. Mas era também o chegar do sonho: estávamos a caminho das dunas do deserto.

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quarta-feira, março 22, 2006

Perdidos por Fés (2003.03.01)

Já era noite quando chegámos a Fés. Os candeeiros pouco ajudavam, mas percebia-se a muralha da Medina à nossa esquerda. Ali dentro algures, tínhamos duas camas à espera. Agora, só faltava mesmo o golpe de sorte que nos mostrasse o caminho. Porque, até ver, era oficial: estávamos perdidos.

Na rua, os albornozes cruzavam-se como formigas, entre uma procissão de Mercedes amolgados e carroças a entulharem o alcatrão. Parecia que ninguém tinha vontade de ir jantar a casa. Em contraste, o silêncio era total dentro do jipe. Com receio da resposta, ninguém arriscava perguntar. Mas nada tinha mudado: eu não sabia por onde estava a ir.

Às tantas, cansei-me e parei. Supostamente, para olhar para o mapa. Na realidade, para respirar um pouco e orientar as ideias.

Foi o suficiente para as formigas voltarem a cabeça. E subitamente, um a um, apareceram todos os guias amadores da cidade. Há sítios onde os desempregados se tornam pedintes. Aqui, fazem-se guias.

Farto de estar perdido e de enxotar um coxo e depois um barbudo, fiz por me ver livre da desconfiança. O Mohammed até podia ser um habitué nos alinhamentos das esquadras de polícia, mas o maior dos nossos riscos era dormirmos na rua. Então, abri-lhe a porta do carro: “Tem a certeza que sabe onde fica o hotel?”

Ser céptico não me garantiria uma almofada para a noite. E confiar no Mohammed levou-nos direitos aos nossos quartos e a uma tajine de cabrito. Os espíritos estavam renovados, mas para mim iniciou-se uma história de inimizade com a cozinha marroquina.

No dia seguinte, pouco mudou. Sentíamo-nos perdidos. Mas, desta vez, o Mohammed levava-nos por um cenário de filme de época. Aquelas ruas estavam ali desde 789, toscas e velhas como um carvalho retorcido que não se deixa de admirar. E a fazer de Fés a cidade mais intemporal e extraordinária que Marrocos tem para oferecer.

Que sempre assim fique. Inch’Allah.

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In the Cave of the Swimming Men

Hoje, deitei-me às 3 e 10 da manhã para ver um filme que terei visto umas 6 vezes. Até o tenho em DVD, mas sei que nunca o conseguirei abandonar numa qualquer sessão tardia de televisão.

Há filmes que me deixam numa espécie de deslumbre hipnótico. Seja pela fotografia. Talvez pelo som. Ou sobretudo pelo cenário. Enfim, em tudo sinto um chamamento que me reaviva os sentidos.

Sei também que não sou o único a ter em “O Paciente Inglês” e “África Minha” os filmes da vida. Mas, e peço desculpa por isso, é a minha África que lá está.

Não nasci lá. Nunca lá tive uma quinta. E até a encontrei tarde. Mas desde que cheguei ao deserto e à savana, fiquei refém de um sortilégio: é à distância que a adoro, mas nunca de lá consegui sair.

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quinta-feira, março 16, 2006

Verde no azul (C'haouen, 2003.03.01)

Todos conhecemos Chefchaouen. Há quem não saiba, mas já se cruzou com as suas portas e janelas. E já olhou com espanto para um dos dois azuis mais extraordinários de todo o mundo.

Fica no Norte de Marrocos e é uma terra de fantasia a que não se pode ficar estranho. Mas é terra onde as portas não se abrem para a liberdade.

Aos 26 anos, o Oued foi à procura dos dias livres e atravessou o mar até Bruxelas. Mas a vida não lhe dera esse desígnio e teve que regressar. Para a Chaouen que é azul, mas onde se entende que a relva cresce mais verde para Norte.

Se fosse uma personagem de Mackintosh-Smith, talvez dissesse que “no estrangeiro, a fortuna dar-te-á uma pátria; na pátria, a pobreza fará de ti estrangeiro”. Ou que o Magrebe não é uma janela azul para a oportunidade. Mas, aos 41 anos, apenas encolhe os ombros com resignação e deixa os olhos brilhar quando fala da Grand-Place.

O Hassan nunca saiu. Enquanto ele sorri compro- metido, ponho-me a pensar que a sua oportu- nidade deve estar em Chefchaouen. Se há gente que vende a senegaleses e malianos um bilhete para a morte anónima numa jangada, eles devem ter estes olhos e este bigode. Mas também pode ser a minha imaginação a trabalhar. O Hassan não fala muito.

Vencer o Estreito de Gibraltar é um sonho antigo. Hoje no caminho para Norte, como dantes era ao contrário. Até 1920, só três infiéis tinham percorrido todos os 100 quilómetros que separam a Europa de Chefchaouen. E apenas um sobreviveu para dizer que a relva também cresce verde para Sul.

Foi também em Chefchaouen, acompanhado daquele incrível azul que acena às janelas e acolhe nas portas, que descobri que o verde também crescia para Sul. Aí, começou a minha viagem.

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terça-feira, março 14, 2006

Gente fina (Tanger, 2003.03.01)

Tinha conduzido a noite toda, mas bastou sair do ferry em Tânger para logo perceber como os marroquinos são prestimosos.

No porto, todos lutam para que nada vos falte. Ora pedem o passaporte ou o visto ou de novo o passaporte. E nem terão que ser funcionários da alfândega. No nosso caso, eram cidadãos comuns que prescindiram do Sábado de Carnaval para que não nos sentíssemos desamparados.

E num gesto que achei ser de acolhimento, era vê-los a esticar o braço com a palma da mão para cima. Na mais humilde ignorância, acabei por deixar uma ou outra moeda naquelas mãos abertas. Espero não ter ofendido ninguém.

Como o bem-estar do estrangeiro é uma prioridade, tivemos até dois marroquinos a buzinar alegremente atrás de nós durante 2 ou 3 quilómetros. Às tantas, lá passaram ao nosso lado e até quiseram que ficássemos com uma espécie de pequeno sabonete acastanhado. Houve quem dissesse que era haxixe, mas não acreditei.

E depois, as crianças a seguirem-nos em pelotão e a desejarem-nos as boas vindas na sua língua. Ainda me lembro das suas vozinhas: “Baksheesh, Basksheesh”.


P.S.: Fora de coisas, vocês têm um país extraordinário. Deixem lá o pessoal curti-lo.

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segunda-feira, março 13, 2006

Carta a um pobre desgraçado

Caro Manel Gomes da Costa,

Onde quer que estejas, espero que esta carta te vá encontrar de saúde.

Provavelmente, estás numa qualquer escala de aeroporto a caminho do 41º país que vais visitar. Tens que ter paciência.

Sabes que eu te compreendo. Calculo que ser director de fotografia da “Volta ao Mundo” implique grandes sacrifícios.

Ainda por cima, sei que não teres que pagar para viajar não está de acordo com a tua estatura moral. Mas, olha, tens que aguentar.

Faz então boa viagem e traz-me uma concha ou coisa assim.

domingo, março 12, 2006

À boleia dos faraós (2003.01.02)

No último dia no Egipto, dei por mim a pensar em dois programas que tinham escapado: dar uma volta de feluca e ir aos dervixes.

Andar de feluca não era propriamente uma aventura. Era somente encontrar num pequeno barco à vela a reclusão que já nos fazia falta e um silêncio que nunca tínhamos tido. Uma feluca no Nilo talvez desse para isso. Mas não calhou.

Já para a dança dos dervixes tudo estava combinado. Só que um voo doméstico atrasou-se e ficou tarde demais para reencontrar o invulgarmente simpático e paciente Mohamed Sempel. Ou seja, e sendo um taxista, uma autêntica vergonha para a profissão.

Levou no táxi dois estrangeiros cheios de lama e sem qualquer dinheiro no bolso. Ofereceu um cigarro quando acendeu o dele. E deu o número de telefone para o caso de virmos a precisar.

Foi tudo pela gorjeta? Provavelmente. Mas soube merecê-la. E não é fácil guardar a serenidade numa cidade onde as auto-estradas se atravessam a pé e as mudanças de direcção se assinalam com a buzina.

Em suma, este texto destina-se a aplaudir vigorosamente o sistema de transportes egípcio. E inclusive a ovacionar de pé a Egyptair, que me deixou fumar 4 cigarros no voo Cairo-Lisboa.

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sexta-feira, março 10, 2006

Abu Simbel e o Marlboro Man (2003.01.01)

Eram 3 e 48 da manhã e mal conseguia pensar com aquele frio. Só tinha dormido três quartos de hora, o meu cobertor tinha a espessura de um lençol e o ar condicionado da carrinha não funcionava. E, para cúmulo, nem havia sinais do batalhão militar que nos iria escoltar até Abu Simbel.

Ainda com frio, acabei por adormecer. Mas um par de horas depois, o calor acordou-me. Rodávamos já pela estrada do deserto e uma placa dizia que o Sudão estava a menos de 60 quilómetros. Feitas as contas, o templo de Abu Simbel devia ficar a uma meia hora.

Já tinha lido sobre a incrível descoberta do templo depois de séculos e séculos enterrado na areia. Já me tinha espantado com a sua desmontagem pedra por pedra para o reconstruírem 210 metros atrás. Mas nunca se está preparado para Aquilo.

Esmagador. Esmagador e perfeito. Não digo mais. Não é para palavras.

Já no regresso, enquanto cabeceava de sono, pensara de novo na galabiyya que tinha comprado e perdido no dia anterior, algures no souq de Aswan. Mas, ali, apenas um dia passara e já todas as ruas já me parecerem diferentes. Tinha fé na memória visual da Fátima, mas não foi a solução. Perdidos em Aswan, capítulo 2. “Bem, vou só ali comprar um volume de Marlboro e depois recomeçamos."

Antes de mais: eu sei que não se compra tabaco a alguém que anda a pé por um mercado. Mas ele tinha um volume na mão e só pedia 120 libras egípcias (3 contos e picos na altura). Por isso, parei e enfiei-lhe uma nota de cem na mão. Ele pediu mais 20 e eu disse-lhe que lhe dava mais 5. Ele concordou.

Então, enquanto eu procurava pela nota certa, ele esticou dois dedos para uma de 50 libras e passou-me o tabaco para a mão. Meio aturdido, pensei: “Espera. O que é que se passa aqui?” Atirei-me para a frente, arranquei-lhe a nota e gritei meio em inglês, meio em português (este só para os palavrões): “There’s no business anymore! Give me my money!”

“No problem, zir. We do bisness. Happy new yer” dizia ele. Nessa altura, já eu trazia na mão as minhas 100 libras e um rasgão da sua algibeira. Fechei o punho junto ao nariz dele e, aos gritos, ameacei esmurrá-lo. Mas aquele ataque de fúria tinha chamado a atenção e, em nosso redor, juntara-se uma pequena multidão.

Senti medo pela Fátima e por mim. Talvez tivesse exagerado. E começávamos a andar mais depressa quando ouvi “Portugal! Portugal!”. A face não me era estranha, mas só percebi quando o vi a agitar na mão uma espécie de veste comprida. Finalmente, tinha encontrado a minha galabiyya. Ou, melhor, ela descobrira-me a mim.

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terça-feira, março 07, 2006

Um reveillon egípcio (MS Voyager, 2002.12.31)

As doze passas dispensam-se. O bolo rei só se suporta sem as frutas cristalizadas. E o champanhe são dois golos numa bebida de um só dia.

Mas já me faz falta a contagem decrescente. Porque é assim que se fica a saber.

Ao menos que um egípcio desse as horas em árabe. E que deixassem guardada a mais feia de todas as dançarinas do ventre.

Ao menos isso.

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Nasser, o ignóbil (Aswan, 2002.12.31)

Assim que nos viu no cais, armou a vénia. Dobrado pela cintura, abriu os dois braços num gesto que restara dos tempos coloniais. Mas agora já não era subserviência. Era negócio. Então, quando chegámos perto, ergueu-se e sibilou num esgar de dois dentes: “Pour le souq, messieurs?”

Nasser, condutor de caleches, tinha daquelas faces em que instintivamente não se confia. Conseguia sorrir com facilidade e gastar só um segundo para carregar o cenho. Mas o longínquo souq de Aswan era o nosso destino.

Era um mercado de caos e poeira, como em qualquer cidade do deserto. Ali, as bancas de tecidos, frutos e especiarias eram serventia para a maioria árabe e para os últimos núbios. Só nós violentávamos a genuinidade, com a nossa palidez deslocada e os nossos olhares circunspectos.

Sabe bem não ter ocidentais à vista. Porque são sítios como estes que me entregam à ilusão do viajante. Às vezes, até do explorador. E aí, até desdenho dos aforismos (“o viajante vê o que vê e o turista vê o que veio ver”, GK Chesterton) de que não discordo. Porque o crédito está nas minhas botas empoeiradas e nos sons que só os meus ouvidos não compreendem.

Foi um acidente o reencontro com a rua principal. Nasser já nos tinha visto e preocupava-se agora em empurrar quem já nos oferecia os seus serviços. O modo como dizia os erres era seco e desagradável enquanto agitava os braços até nós. Quase tão desagradável como a sua sinistra suavidade. Então, desconfiado como nunca, procurei confirmação para o preço: “Nasser, deux euros?”

Bruscamente, atirou uns olhos faíscantes para trás. Que não tinha sido esse o acordo com o pobre Nasser e que um acordo não devia ser traído. “Dix, dix” repetia, abanando a cabeça. Falando da garganta, acusei-o de querer enganar-nos. Sobrepus a voz à dele e ameacei sair da caleche. Então, pondo os olhos no chão e erguendo o dedo ao céu, jurou: “Pour le Dieu”. E repetiu: “Le Dieu, le Dieu”.

Aquilo pareceu-me solene. Um bom muçulmano não invoca impunemente o nome do Terrível, pensei. Naquela terra de nenhures, perdi a segurança para lhe contestar a devoção. E fechei com um vencido "Nasser, you are not a good man".

Até que o sorriso do condutor regressou. “Hasheesh? Hasheesh?” Era uma oferta. Não ia ter que pagar. Percebi então que já tinha pago o suficiente. Afinal, era um turista em Aswan.

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sábado, março 04, 2006

2002.12.29, Pelo Nilo

Sempre desconfiei de cruzeiros. Tinha a ideia de que me iria cruzar com gente com quem nunca escolheria estar. E, pior, de quem não conseguiria escapar.

Hoje, por experiência, falo. Num cruzeiro, pode-se ter que jantar com uma professora primária em missão de ódio (“isto são gourgettes, não é? Põem gourgettes em tudo!”), pode-se ter que fumar sem-filtros egípcios (“only wone we ave, zir”) e até ser-se olhado de lado porque todos os outros se disfarçaram de xeques ou odaliscas.

Hoje, por experiência, digo. Fazer um cruzeiro é um exercício de fé. É aceitar com um sorriso uma venda nos olhos. E esperar que o cozinheiro não tenha comprado gourgettes a mais.

Hoje, por experiência, concluo. Levem-se amigos. Cinco ou seis. E depois siga-se para o Nilo e reservem-se os fins de tarde para ver os montes a corar atrás das palmeiras.

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sexta-feira, março 03, 2006

O Companheiro de Viagem

Esta semana, fiz as contas: começámos a viagem há 28 anos.

Umas vezes deste-me boleia. Outras, apanhei-te no caminho. Até que, há sete anos, decidimos partilhar a estrada toda. E resultou na Viagem. Mesmo.

Mas, entretanto, descobrimos a perversidade dos bancos da frente. É que, lado a lado a fazer quilómetros, deixámos de olhar um para o outro. Era mais fácil ir seguindo o caminho pela janela.

E até esquecemos que ninguém como nós põe mais entusiasmo num mapa. Ou consegue encontrar magia nas linhas de um road book.

Ontem, com a viagem a acabar, lembrámo-nos do que era olhar de frente. E gostei de sentir que as viagens terminam, mas os caminhos permanecem.

É que às vezes, companheiro, é melhor olhar pela janela. Vai na volta, até nos vemos melhor assim.

quarta-feira, março 01, 2006

2002.12.29, Luxor e Karnak

Montado num burro, o jovem nobre inglês era o primeiro no topo da duna. Pela frente, já se via o templo. Estava deserto. E o silêncio era absoluto. Pelo menos, até chegar a caravana dos carregadores.

Estávamos no Século XIX. Eram os tempos do Grand Tour. Era o turismo a nascer, nos dias em que 1900 anos de História não tinham a companhia de 1900 máquinas fotográficas.

Luxor e Karnak são magníficos. Verdadeiros testemunhos de poder e resistência. Quem me dera tê-los encontrado de burro…

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