segunda-feira, outubro 01, 2007

Despertares (Moremi-Savuti, 28.04.2003) *

Ainda não eram 6 da manhã. No horizonte, uma cor púrpura tingia o céu, prometendo mais um dia de calor. Pela picada, o camião Mercedes avançava com os faróis ainda acesos, espalhando à passagem uma fina película de areia dourada. Ainda estávamos dentro das fronteiras da reserva de Moremi. Mas se a viagem corresse sem acidentes, chegaríamos a Savuti pelo meio do dia.

Na maior parte do tempo, fazíamos o caminho a dormitar. Uns encostavam-se costas com costas, num precário equilíbrio a que os solavancos não ajudavam. Outros deitavam-se agarrados aos sacos-cama, tentando combater o gelo da madrugada. Ao sexto dia em África, já estávamos habituados a descansar no meio do desconforto.


De vez em quando, uma raiz mais atrevida emboscava-se na estrada e atirava ao ar uma ou duas rodas do camião. Como os amortecedores já há dias que davam mostras de cansaço, o Mercedes aterrava na picada no meio de um estrondoso ribombar de molas e aço.

Depois do solavanco, ficava o caos. As mochilas tombavam dos bancos vazios que ocupavam, os chinelos só voltavam a aparecer três fileiras mais à frente e ouviam-se um babel de imprecações. E, ocasionalmente, um ou outro passageiro que tinha sido apanhado na voragem era visto a levantar-se do chão da coxia, inspeccionando um novo arranhão num joelho ou cotovelo.

Nessas alturas, estimulado pelo safanão, pelo chilrear das rolas ou pelo Sol que ia mostrando o cocuruto, havia quem desse jeitos de acordar. Abria os olhos num arregalo, voltava a endireitar-se no banco e ocasionalmente bocejava e espreguiçava-se como se estivesse decidido a começar o dia.

Só que então voltava-se a sentir a lona dos assentos ainda húmida da noite. E percebia-se que o bocejo fizera uma pequena nuvem no ar ainda frio. Então, puxavam-se as mangas da sweat-shirt pelas mãos abaixo, reencaixava-se a cabeça entre os ombros e esperava-se alguns gélidos minutos pelo sono que haveria de reaparecer.


* Texto escrito em meados de 2005 e hoje publicado como análise comparativa à madrugada do último Sábado em que o meu filho se comportou como um hipopótamo raivoso.

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