terça-feira, fevereiro 28, 2006

2002.12.29, Vale dos Reis

Bendito foguete que rebentava às 5 da manhã. Era sinal que o autopluma do Grupo Excursionista “Os Bagacinhos” finalmente saíra à conquista de Fátima ou de Badajoz. Afastavam-se os tachos a roçar dentro dos sacos de palhinha. Acabavam-se as estaladas no ouvido de um puto mais irrequieto. E quem morava junto à Tasca do Saraiva podia voltar a adormecer.

Já bem longe dessa adolescência, era agora a mim que o asfalto levava. Estava em excursão. E chegara a uma pedreira árida que falhou em me impressionar: o Vale dos Reis.

Via-se o primeiro túmulo. Esse seria um plano decente. E deixaria de se achar este Vale dos Reis como um tépido déjà-vu de caves descoloradas e gente demasiado expressiva. Já fora o destino dos deuses. Agora, era Turismo.

Valeu-me o bom Ahmed Ahmed, o escultor de alabastro. Pouco mais tinha que a esperança de melhores manhãs. Mas era genuíno.

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Tintin e Astérix

Aos doze anos, o João Vieira Pinto já cacilhava e levava miúdas para os caniços. Com essa idade, entretinha-me eu com outros prazeres menos luxuriantes: viajar com o Tintin e o Astérix.

Eles foram o meu primeiro passaporte para longe. Para o Egipto, para a Helvécia ou para a imaginada Sildávia. E explicaram-me que viajar é uma mentalidade. Não se faz só pelo gozo ou para ver sítios bonitos, faz-se para abastecer o espírito.

Todas estas viagens estão já irrequietamente à espera do meu filho. Espero que se sinta tão compensado quanto eu fui.

E que não evite a companhia do jornalista belga, só por não se lhe conhecer uma parceira, ter aquele penteado intrigante e andar sempre a passear uma cadela.

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domingo, fevereiro 26, 2006

2002.12.27, Cairo (Parte III)

Nunca quis ter neste espaço um diário de viagem. Prefiro não chamar aqui detalhes que perdem significado fora do ambiente. Só que hoje saio do Cairo a fazê-lo. Perco na habilidade das minhas palavras, mas junto os sons que fizeram o momento. Pode ser que ouvir enquanto lêem vá mascarar o aborrecimento.

Era Sexta-Feira, o dia sagrado do Islão. Completamente deserta, a mesquita de Sultan Hassan recolhera-nos num silêncio de sepulcro. Ali estávamos, dois infiéis ainda em tempo de paz, e pela primeira vez sentíamos o Cairo tranquilo. Estranhamente, mesmo lá fora, a cidade estava muda e inerte. Foi então que surgiu.

Num chamamento do outro mundo, o troar de mil gargantas encheu os ares. Gutural e temível, como dum exército de fantasmas: “Aaaaaaaallaaaaah”. Ainda hoje me recordo da entoação com que aquela prece encheu os ares. Ao mesmo tempo tétrica e profunda, fez-nos estremecer. Por dez segundos, sentimos um medo irracional.

Há um Cairo mais moderno, salubre e turístico. Mas o Cairo que para nós ficou foi o das vidas amargas. E dos momentos atmosféricos. O Cairo da eternidade, que nos maravilhou para lá do indefinível.

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quinta-feira, fevereiro 23, 2006

2002.12.27, Cairo (Parte II)

Desenganem-se os intolerantes: as preces vencem no bilenar Misr al-Qadima, que é bairro de árabes cristãos. Como na deserdada Sharia Gamaliyya, onde os árabes muçulmanos dobram a Allah.

É decrépito o Cairo, fechado por um céu de negrume e levado pelas mais lamacentas das ruas. Caminhei por sítios de mil anos, vigiado por minaretes e senti uma iniquidade que pode nem ser daqui.

Na verdade, estava no escuro das minhas convicções. Longe do meu país. Longe de uma língua que percebesse. Mas, mais que tudo, desterrado do meu século.

Estava nas mãos desta cidade de fé. E total e completamente fascinado.

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quarta-feira, fevereiro 22, 2006

2002.12.27, Cairo (Parte I)

“Travel makes one modest. You see what a tiny place you occupy in the world.”

Sei que em 1849 Gustave Flaubert esteve no Cairo. Só não sei se ele disse esta frase pelo Cairo. Sei que se assim fosse, era apenas justo.

Até ao Egipto, sempre andáramos por sítios onde os táxis acendiam as luzes à noite e os telhados não eram depósitos de lixo. Sítios onde as mulheres nas ruas eram tantas como os homens e onde o aroma do sésamo não escapava de casas de uma assoalhada.

Dá que pensar: até ao Egipto, não saíramos realmente de casa. Mas chegáramos ao Cairo, a “Mãe do Mundo”. E partilhávamos a maior cidade de África com mais 16 milhões de almas.

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2002.12.27, Planalto de Giza

Escrevi há algum tempo que consigo admirar as religiões pelo que os homens construíram em nome do seu Deus. Todas elas. Sem excepção.

Já não consigo admirar os homens que destroem em nome de um Deus. Ou de Petróleo. Nenhum deles. Sem excepção.

Quando pensámos no Egipto, soavam ainda os ecos de uma manhã de Novembro em que seis fundamentalistas islâmicos chacinaram 58 turistas e 4 conterrâneos em Deir el-Bahri. E, no écran da BBC, dava-se por iminente a invasão de um Iraque supostamente armado com a Destruição Maciça.

Talvez estes não fossem os dias certos. Mas também são belas as manhãs egípcias. E o peso do drama só mesmo num cenário obra de um Deus Vivo: tínhamos os olhos nas Pirâmides.

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segunda-feira, fevereiro 20, 2006

O "bapa"

No dia em que o meu filho nasceu, sussurrei-lhe que quando ele chegasse aos 15 anos, havíamos de subir juntos o Rio Níger.

Talvez lhe devesse ter dito que ele havia de ser um homem feliz e inteligente para poder navegar com sucesso entre as margens da vida. Mas, não, na altura deu-me para falar noutro rio. São coisas que se dizem.

Este Natal, ofereci-lhe um mapa. Um grande que afixámos na parede do quarto. Ontem, para meu espanto e deleite, o Afonso esticou o dedo e disse: “Bapa”.

Hoje digo-lhe onde fica o Níger. Temos que nos preparar para a vida.

2002.10.11, Barcelona (Parte II)

Anda-se em Barcelona. Há cidades onde tudo o que é de ver foi nascendo perto. Outras deixaram que as vistas se espraiassem. E põem-nos a calcorrear que nem peregrinos medievais.

Barcelona é assim. Sente-se ao andá-la. O que não ajuda se a nossa companheira de viagem traz uma gripe de Lisboa. Mas enfim, não há como assinar a rendição a todo este delírio de cor e euforia.

Então andámos. Por entre as fantasias alucinadas do Park Güell e do Passeig de Gràcia. Pela insana babel do Barri Gòtic e das Ramblas. Pelas lunáticas visões do Palau de la Musica e de Santa Creu i Sant Pau. Enfim, demo-nos à vibração do Modernismo, assombrados pelo génio louco de Gaudí e pelo meu favorito Domènech.

Tentei fazer entrar a palavra “vortex” neste texto. Deixo-a para o fim. Assim é Barcelona.

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domingo, fevereiro 19, 2006

2002.10.11, Barcelona (Parte I)

Quando me dispus a fazer um blog sobre “sítios, destinos e viagens”, planeei ir desfilando as minhas experiências por ordem cronológica. E, aqui e ali, intervalava com um post sobre generalidades ligadas às coisas de viajar.

Até hoje, ainda não me desviei do plano. Mas confesso que, em certos dias, não me apetece escrever sobre a data que se segue. Prefiro saltar para o Sahara ou para o Okavango. E isso é injusto. Porque me larga a pensar que aquele sítio – o seguinte – não terá sido assim tão especial.

Hoje sinto que prejudico Barcelona. Não por uma qualquer ânsia mais meridional. Desta vez não. É, isso sim, por familiaridade.

Já lá estive por 3 vezes. E sempre que lá vou, sinto-me na cidade fora do meu país onde viver me seria menos estrangeiro. E onde mais naturalmente dialogo com as máquinas de bilhetes do Metropolitano.

Em Barcelona, não estou em casa. Mas até podia estar.

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sábado, fevereiro 18, 2006

Theroux

Ainda vou na página 381. Portanto, faltam 114. Mas, mesmo que agora parasse, 'Dark Star Safari' já não saía do Clube dos Memoráveis.

É que Theroux não escreveu um mero travelogue. Desceu por África alimentando-se da sua energia vital e deixou-se desabar sobre mim como um murro no peito. Uma tempestade que ainda ando a tentar gerir.

Com instrumentos diferentes, o relato de Paul Theroux entrou no mesmo panteão onde já estavam Bryson (pelo humor) e Chatwin (pelos contos). É uma casa que os escritores de viagens me andam a construir e onde sempre aguardo por novas pedras e novos braços.

Porque, na verdade, a ficção é cada vez menos a minha literatura. Prefiro vidas que alguém viveu. Faz-me saber possível vivê-las. E até posso deixar os livros a meio.

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sexta-feira, fevereiro 17, 2006

2002.08.10, Pela Costa Amalfitana

Há sempre um momento para se chegar. E, por vezes, chegar um pouco antes ou um pouco depois não é o suficiente. Porque já não é o momento certo.

Uma das primeiras vezes que estive com a Fátima falou-se de Positano. Demoraríamos 17 meses a lá chegar. Até nem era muito, mas já passara o momento. Roma ficara-nos com a frescura e mesmo o espírito antecipava o regresso.

Valia o Punto, que nos arrastava em ziguezague pelas estradas de falésia. E que levava ao fim uma lua-de-mel onde o romance fora trocado pelos quilómetros.

Mas o Sul ainda tinha a Positano do sonho. A bela Positano que não tem que se esforçar ao céu, porque já por lá anda. Pena estar cheia. Pena ser Agosto.

Decididamente, não estávamos em forma. Pena por Sorrento, onde os anos sessenta pareciam ter estacionado. Pena por Amalfi, bela de ambiente e paisagem. Já Capri c’est fini, metendo no nosso último dia uma ilha de desilusão.

No fim, até o humor se esgotou. O momento já era de estar em casa.

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2002.08.09, Vaticano

Sou agnóstico. Mas tenho que admirar as religiões.

Na verdade, nunca ninguém me provou para lá do axioma que Ele e os outros Eles existem. Mas o que o Homem construiu em nome d’Eles conta-se entre as mais extraordinárias inspirações que olhos podem ver.

Nem sequer vou entrar pelo ímpio caminho de ter sido inconvictamente baptizado e ter inconvictamente casado numa igreja. Será assim tão difícil perceber que há quem se case numa igreja porque esse é o sítio mais bonito para se casar?

É que as igrejas são bonitas. Nas igrejas, está-se bem a ouvir os murmúrios das paredes. Nas igrejas, os raios de sol vão sempre pousar nos sítios certos.

E mesmo não sendo a mais linda igreja que já vi, a Basílica de São Pedro faz jus. Aliás, mesmo sendo o mais pequeno país do mundo, ter ainda aquele Museu e a Capela Sistina entrega ao Vaticano o melhor ratio de monumentos extraordinários por metro quadrado que um país pode ter.

Assim, mesmo que não se chegue a ver o Papa, ir ao Vaticano refina-nos os sentidos. E faz-nos ter que admirar as religiões.

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2002.08.07, Roma (Parte III)

A Piazza Venezia estava inundada de adrenalina enquanto eu derrotava repetidamente o código da estrada. Mas foi ali que me fiz para Roma. Aquele carrossel soltou-me e despiu-me da pele de estrangeiro.

A partir daí, a Fátima e eu caminhávamos ao ritmo dos nativos (certo e sabido como o primeiro passo para passar despercebido) e a olhar menos para cima (o segundo?).

Entrávamos na cidade com mais referências arquitectónicas em todo o Mundo, mas entrávamos com a frescura dos habituais.

E então, a cidade era nossa. Não tanto a Roma do Coliseu, da Fontana di Trevi e da Piazza di Spagna (onde se anda devagar), mas a Roma do marginal Trastevere e do periurbano Laterano.

Passo a passo, fez-se incomparável para nós. Bem merece os três posts.

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2002.08.07, Roma (Parte II)

O que tenho escrito sobre as minhas viagens tem algo em comum: anos de atraso. Anos de atraso para esses dias e talvez até anos de atraso para o momento em que os deveria ter escrito.

Percebi, no entanto, que esta tardia recuperação tem uma vantagem: as emoções deram vez aos pensamentos e produzem-se as verdades.

Uma delas tem uma semana de vida. Descobri que muito do sucesso de Roma se devia ao modo como cheguei à cidade. Ao volante de um Fiat Punto.

Não é fácil conduzir em ruas onde até os velhos se comportam como cadastrados sem redenção. A voragem perturba e acaba-se por entrar em sentidos contrários e cruzar duplos traços contínuos. Mas a impassibilidade dos carabinieri foi uma iluminação. Entendi que era assim mesmo. Tinha que ser rápido. Tinha que ser romano.

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quarta-feira, fevereiro 15, 2006

2002.08.07, Roma (Parte I)

Conhecera-o nessa festa. Parecia tipo com quem se podia falar. E assim foi, os dois, sobre as vidas com filhos e sobre os sítios com vida.

E, então, directo do limbo dos desajustados, irrompeu o outro: “Ah, mas Berlim é bem melhor que Roma!”.

Aquilo não era uma provocação. Antes fosse. Era antes mais um dos peremptórios a exercer o seu direito à cabotinice. Alguém que decidira que aquela discreta troca até era merecedora do seu apport omnisciente. Na verdade, o benemérito informador teve o condão de nos desanexar da conversa. Para quê? Tudo já tinha sido dito por Ele.

Mas a cena deixou-me a pensar: o que é isto de “ser melhor”? Já não nos bastavam as Mercer e as E.I.U. a arrogarem que Vancouver, Geneva, Melbourne e Zurique são as melhores cidades para viver e visitar? E que hoje a segurança é a palavra, por isso a cidade do Luxemburgo é a mais sadia das escolhas? Para além de tudo, ainda tenho que ouvir um insonso com meio carimbo no passaporte a falar em “ser melhor”?

Desprezo estas pretensas sumidades que nos abrem as portas dos seus sossegados espíritos. Onde é que está escrito que viajar já não é pela experiência? Regressar mais rico em dias que foram bons. Mas também em dias que se complicaram.

Roma nem foi a melhor cidade que conheci na Europa. Consegue ser excessivamente quente e irritar-nos com um incansável buzinar. Só que é um sítio para gente feliz. Por isso, e até ver, Numero Uno.


P.S.: O meu veneno teria ficado guardado se Você não confessasse nunca ter ido a Roma.

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domingo, fevereiro 12, 2006

2002.08.06, Pela Toscânia

Chatwin dizia que a Toscânia era um sítio de escrever. Aqui, saía-lhe.

Sem arrogância, percebo. É que o silêncio parece nunca desistir dos campos toscanos.

E o tempo não é sôfrego. Antes escolhe as piazzas para com os velhos dividir o sol das cinco.

Na verdade, eu nunca acordei na Toscânia. Ou lá li um livro. Eu passei pela Toscânia. Entrei na remota Barberino, fui emboscado por San Gimigniano e caminhei pela tão-demandada Siena. Mas, comigo por ali, o sol nunca se pôs.

Nem precisava. A Toscânia deu em seis horas o que eu imaginava receber. De novo, trouxe apenas uma ideia: este é um sítio de uma semana.

Só não se entende a mania dos ciprestes. Não se juntam em bosques, não fazem sombra e marcam encontros em cemitérios. Qual é a graça?

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sábado, fevereiro 11, 2006

2002.08.04, Florença

Dá-me a ideia de que a maior parte dos casais com que me dou têm filhos. Certo, certo estou é que nenhum deles é casado.

Só que tal minudência nunca os fez sentir indignos de uma lua-de-mel. Está bem que é oficiosa. Está bem que só sete ou oito meses depois se percebeu que tinha sido A Lua-de-Mel. Mas os casais vivem de datas e sítios. Então, é assim: ninguém foge.

A minha teve largada no Agosto de Florença. Uma Florença que alardeia superioridade. Faz-nos aqui e ali tropeçar em Michelangelo e Botticelli para se divertir em silêncio com a admiração dos comuns. Não é presunção, é senioridade. E é porque sempre nos encontra em arregalo, como se fosse um museu à luz de Sol e estrelas.

É museu. Só que, felizmente, Agosto deixa os japoneses mais moles.

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